sábado, 24 de março de 2012

Poço e Água Fria



Você disse que se jogaria no poço e eu não acreditei. Durante todo o dia, enquanto eu estava às voltas com meus cálculos de viabilidade de projetos e opções alternativas para investimentos, você deixou dúzias de recados na secretária eletrônica e enviou tantos torpedos quanto minha caixa conseguiu suportar. Obviamente eu não li nenhum deles; as ameaças de que você se jogaria no poço não eram nenhuma novidade para mim. Ao contrário das informações do mercado financeiro, que a todo tempo chegavam em meu e-mail.

Ao fim do dia, após vencer uma maratona de reuniões improdutivas e um interminável engarrafamento, cheguei em casa só para constatar que seus planos se mantinham inabaláveis. Você se jogaria no poço se eu não lhe desse, ao menos, cinco minutos de atenção. Impaciente e inquieto para finalizar um dos relatórios que deveria apresentar na manhã seguinte, resolvi me render aos seus pedidos e me dispus a ouvir as prováveis reclamações que viriam a seguir. Eu estava disposto a ouvi-las. Teria ouvido todas até o final, se os acionistas não insistissem em me ligar fora do horário de expediente em busca de informações extra oficiais sobre o resultado trimestral da empresa.

Você ficou enlouquecida quanto atendi ao aparelho celular de última geração e levei adiante uma conversa que sequer deveria te começado. Esbravejou palavrões que não combinavam com sua voz melodiosa e lançou pragas ao vazio. Arremessou algumas peças de cristal no chão e finalmente permitiu que o silêncio invadisse a casa. Eu teria lhe agradecido pelo gesto de bondade, se você não tivesse cruzado a porta dos fundos com o estrondo de um furacão. Você ia se jogar no poço.

Encerrei a conversa com o alto executivo muitos minutos depois do previsto. A casa continuava em silêncio, mas do lado de fora eu ouvia sua voz ecoando à distância, amaldiçoando meu sucesso e os bons negócios que me mantinham cada vez mais preso ao notebook. Eu ignorei cada palavra, atento às linhas das complicadas fórmulas que revelariam a saúde financeira da empresa. Finalmente, tudo silenciou por completo.

Respirei aliviado, relaxando o corpo cansado no encosto da cadeira, e apreciei aquela tranqüilidade por curtos e agradáveis segundos. Eu adorava momentos como aquele e os apreciava como alguém que se delicia com um prato particularmente apetitoso.

Por fim, resignado, deixei a indisposição de lado, caminhei até a caixa de remédios e retirei lá de dentro a embalagem mexida de aspirina. Deixei um único comprido e um copo d´água em temperatura ambiente sobre a mesa.

Vencidos mais alguns minutos de calmaria, a porta dos fundos voltou a se abrir. Você passou por ela, encharcada, tremendo de frio, mas linda como sempre. Mais calma, tomou o copo entre as mãos, ingeriu o comprimido e a água fresca. Franziu o cenho em sinal de reprovação ao sentir o gosto desagradável do remédio e caminhou sem pressa pela casa, deixando no piso encerado a marca de seus pés. Pés pequenos e lindos, enrugados pela água fria que acalmaria seus ânimos por, pelos menos, mais um mês.

Viviane Ribeiro - 25/12/2008

E tenho dito...

... É um pequeno projeto, sem grandes pretensões ou expectativas.

A idéia de trazer à luz os textos que escrevi ao longo dos anos é fruto da insistência de alguns incansáveis e pacientes leitores/amigos, que estão sempre dispostos a despender um pouco do seu tempo com essas coisas que teimam em sair da minha cabeça.

Para vocês que insistiram tanto, aí está. Espero que curtam. E obrigada pela insistência. Sem vocês, tudo isso seria apenas um punhado de arquivos .doc esquecidos no meu pc.

Beijoks,
Vivis.