sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Véspera do Apocalipse


A imprensa daquele pedaço qualquer de lugar nenhum vinha divulgando com alarde crescente a chegada do fim do mundo. De acordo com as manchetes, cada vez mais frequentes, os sinais estavam em todos os lugares: havia ocorrido uma nevasca no verão e o inverno registrara picos de temperaturas escaldantes. Casos de violência chocantes se tornavam cada vez mais frequentes: matricídios, fraticídios e todo tipo de atentado à vida humana que fazia a sociedade se questionar sobre onde iria parar. Até mesmo uma praga de larvas desconhecidas marcou presença, reduzindo drasticamente muitas colheitas naquele ano. Uma espécie de versão moderna dos gafanhotos bíblicos, alguns atreveram-se a devanear. O fim do mundo se aproximava a passos largos, anunciavam as manchetes, mas ninguém imaginava que este dia realmente chegaria. 

Foi numa noite sem qualquer pretensão que o fim do mundo chegou. Quando o ocaso caiu sobre a cidade, os primeiros sinais foram vistos: o céu ficou completamente escuro e, a despeito do que anunciavam os calendários, nem estrelas, nem lua cheia foram vistos naquela noite. 

Os religiosos foram os primeiros a anunciar a chegada do fim. Os sinos da igreja badalaram por muito mais tempo que o normal e não houve na cidade um único ser vivo capaz de fazer-se surdo a eles. Encorajados pelos clérigos, uma hoste de pecadores arrependidos acotovelou-se pelos estreitos corredores do templo sagrado para expiar seus pecados. 

Outro grupo, um pouco menos preocupado com a redenção, reuniu-se ao redor de mesas de bar para brindar ao apocalipse. Brindes à vida longa e prosperidade foram repelidos com gargalhadas sonoras e gracejos. Embalado pelos óbvios sinais de um amanhã que nunca viria, o proprietário do estabelecimento decidiu baixar todo o estoque de bebidas que fora administrado de forma avarenta por muitos e muitos anos. Era o fim do mundo, afinal, aquilo merecia alguma comemoração. 

Alguns lares foram definitivamente abalados pela chegada do fim dos tempos. Muitos casais decidiram que aquele era um bom momento para colocar todas as cartas na mesa. Desfiaram suas mágoas, frustrações e rancores acumulados em anos de convívio conflituoso. Houve choro e gritaria. Alguns descobriram que se amavam, apesar de tudo, e que uma noite de amor bem feito era uma ótima maneira de não encarar a escuridão lá fora. Outros concluíram que a promessa de permanecerem juntos "até que a morte os separe" já havia sido cumprida e que havia melhor companhia para esperar a chegada do nunca mais. Houve despedidas definitivas e batidas de portas.

O fim do mundo trouxe à tona a urgência desesperada dos amores proibidos. Casos secretos, relacionamentos extra conjugais e amores platônicos vieram à luz naquela noite, através dos mais diversos tipos de demonstrações públicas de afeto: amantes jogaram foram suas alianças para um passeio de mãos dadas e patéticas regras socias foram derrubadas. Até mesmo aqueles que nunca haviam encontrado coragem para abrir seus corações tornaram-se valentes diante da última chance de fazê-lo. Entre os chocados e revoltados com a repentina avalanche de luxúria, havia alguns bem humorados de espírito, que não podiam deixar de concordar que todo aquele amor livre era algo bonito de se ver. 

O iminente cataclisma despertou nos corações culpados uma insaciável sede de perdão. Todo tipo de verdade foi revelada embaixo do céu sem luz: o prefeito assumiu publicamente os crimes de corrupção que negara veementemente nas últimas eleições, seguido de perto pelo delegado da cidade e suas confissões de atos truculentos, recebimento de suborno e tortura. Incitados pela onda de sinceridade, outros segredos bem guardados foram trazidos à tona pelos cidadãos de bem que se aglomeravam na praça: pequenos furtos, vícios mal controlados, crimes contra animais de estimação barulhentos, boatos espalhados com intenções cinzentas e muitas outras revelações que poderiam ter disparado uma onda de revolta em tempos normais. Mas aquela era a última noite de suas vidas e não havia tempo para bobagens. Cada nova confissão era recebida com aplausos calorosos e encorajadores. Nenhum deles acordaria no dia seguinte; que fossem adormecer com os corações leves e as almas limpas. 

As celebrações e despedidas avançaram por toda a madrugada. Houve música, dança, risos, beijos, gritos, lágrimas, júbilo e libertação. A noite foi tão repleta de agitação, que ninguém pareceu reparar quando a penumbra começou a esmaecer e o céu clareou. Quando o primeiro raio de sol surgiu no horizonte, iluminou rostos surpresos, incrédulos e assustados. Ninguém ousou dizer uma palavra ou olhar para o lado. Todos permaneciam tão vivos quanto as lembranças e os segredos revelados na madrugada recém desfeita. Mais um dia amanheceu, radiante e inabalável, trazendo o início do fim do mundo a todos os habitantes daquele pedaço qualquer de lugar nenhum. 

Viviane Ribeiro
11/10/2012