quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Noel Encarcerado


O homem velho e gorducho, de barba branca e olhos cansados, remexeu-se no banco dos réus e deixou escapar um suspiro. Sentia-se particularmente esgotado naquele dia, depois de tantas noites acordadas desde que fora envolvido naquela enorme confusão. A chegada ao tribunal havia sido conturbada e estressante.

A lista de acusações contra o réu daquela manhã era longa e os crimes diversificados. O primeiro deles era falsidade ideológica; o homem que se denominava Noel não havia apresentado nenhum documento de identificação e suas digitais não constavam em nenhum banco de dados. A prisão fora realizada graças a um sofisticado sistema interno de monitoramento on line, que detectou a presença do homem forçando a entrada da casa de uma família de classe alta na noite de Natal. Seu DNA foi encontrado em diversas chaminés e janelas da vizinhança e invasão de propriedade privada foi acrescida à lista de acusações.

Do lado de fora do tribunal, ativistas erguiam cartazes e bradavam palavras de ordem contra a tortura de animais silvestres. O invasor de propriedades utilizava como meio de transporte uma espécie de trenó, puxado por nove renas. De acordo com os veterinários responsáveis pelos primeiros exames nos animais, as pobres criaturas apresentavam sinais de maus tratos e pareciam exaustas pelas longas horas atadas ao trenó. O veículo, aliás, não estava emplacado e não havia qualquer documento que pudesse identificar seu proprietário. Infrações de trânsito de diversas gravidades foram acrescidas à lista do torturador de animais e seu veículo foi devidamente apreendido. Várias multas foram emitidas e diversos pontos deveriam ter sido tirados de sua carteira de habilitação, mas logo descobriram que ela não existia e isso lhe rendeu uma acusação de direção perigosa.

No fundo do tribunal alguém gritou a palavra “pedófilo” e um breve burburinho preencheu o tribunal. Corrupção de menores era a acusação mais grave levantada contra o réu. Dentro do trenó apreendido, foram encontradas centenas de cartas assinadas por crianças de idades variadas, pedindo brinquedos e outros agrados em troca de um suposto “bom comportamento” exigido pelo homem, que ainda parecia apreciar ser chamado de “papai”. Uma enxurrada de pais surpresos e indignados prestaram queixas e o número de denúncias de aliciamento aumentava a cada dia.

Noel remexeu-se novamente na cadeira quando o juiz de semblante vazio anunciou que daria o veredito. Mal podia acreditar que aquilo tudo estava perto de terminar. Prometeu a si mesmo que, tão logo aquele circo fosse desmontado e ele finalmente estivesse livre, encerraria sua carreira. Sua existência já não fazia mais diferença para o mundo, no final das contas. Havia uma tonelada de parafernalhas eletrônicas que vinham substituindo com velocidade estonteante os antigos brinquedos e jogos infantis que unia as crianças. Já não recebia mais tantas cartinhas quanto nos velhos tempos e os pequenos não precisavam mais se comportar para merecer os presentes tão desejados. Havia os cartões de créditos, as compras pela internet e o enorme sentimento de culpa de pais ausentes tentando compensar seus erros da forma errada. O bom velhinho havia se tornado um bandido perigoso aos olhos de uma sociedade que parecia ter perdido a capacidade de acreditar em magia e amor desinteressado.

Quando a sentença foi anunciada, Noel deixou-se escorregar pela cadeira, perplexo. As crianças que tantas cartinhas haviam lhe escrito no passado cresceram, esqueceram de sua existência e o julgaram culpado por acusações terríveis. Ele havia sido condenado a passar mais dias do que realmente se achava capaz de viver naquele mundo cinzento e insalubre.

Depois que a justiça foi feita e o caso arquivado, não se ouviu mais falar do trenó abarrotado de cartas de crianças, das nove renas maltratadas e nem do velho-falsário-invasor-de-residência-torturador-de-animais-corruptor-de-crianças. Por causa da idade avançada e de seu perfil criminal, Noel foi enviado a uma instituição psiquiátrica  para cumprir sua pena e lá viveu por anos imemoráveis, alegrando as noites de Natal de seus companheiros de destino. Descobriu-se cercado de pessoas que não só acreditavam nele, como nunca deixavam de colocar cartinhas com pedidos ao pé de sua cama e sapatinhos na janela. Não eram exatamente crianças, muito menos bem comportadas, mas foi o melhor que ele conseguiu em tempos sombrios como aqueles.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Rendição



O Delegado Nóbrega era um dos homens mais temidos e respeitados de todo distrito. Desde que iniciara sua estonteante escalada na hierarquia da polícia, Nóbrega colecionava crimes solucionados e prisões cinematográficas, que despertavam a inveja ou admiração de muitos colegas ao seu redor.

Havia aqueles que diziam que a ascensão de homem tinha a ver com um acordo desleal com a milícia da redondeza; outros alegavam que havia uma trégua acertada com o tráfico de drogas e não era coisa rara escutar que, na verdade, todas aquelas conquistas faziam parte de um pacto com entidades obscuras e poderosas.

Fosse qual fosse a versão, inegável era o fato de que o Delegado Nóbrega tinha um faro execpcional para detectar mentiras disfarçadas ou verdades acobertadas. Seus olhos escuros tinham um brilho especial, capaz de detectar o mais simples desvio de olhar ou a mais discreta alteração de semblante. Sua audição aguçada percebia mudanças em um tom de voz ou  pequenos desvios em um discurso e sua memória prodigiosa era capaz de armazenar detalhes tão suaves, que colocavam em apuros os melhores mentirosos que tinham o infortúnio de cruzar seu  caminho.

Apesar do sucesso, o delegado Nóbrega era um homem solitário. Com espírito agitado e pouca paciência, colecionava tantos relacionamentos mal sucedidos quanto casos policiais resolvidos e não conseguia se interessar por ninguém mais do que se interessava pelas pastas de investigações em andamento sobre sua mesa.

Mas isso mudou, tão repentinamente quanto todo o resto de sua vida.

A mulher que mudaria tudo entrou na delegacia como um furacão, num dia particularmente agitado no distrito policial. Havia sido trazida até ali por causa de uma briga de trânsito e sua presença despertou instantanemanete cada um dos sentidos do delegado. Nóbrega nunca foi capaz de explicar como toda aquela confusão havia começado e menos ainda qual havia sido o acordo que pôs fim ao festival de gritos e protestos na delegacia, mas lembrava-se vivamente de como terminara aquela noite: perdido nos beijos da estranha que deveria estar presa, sob pelo menos meia dúzia de acusações de baixa gravidade.

Quem conheceu o talentoso delegado Nóbrega antes daquele fatidico plantão, afirma que ele nunca mais foi o mesmo. Seus olhos afiados não foram capazes de detectar a inexplicável inclinação da mulher amada para confusões e histórias mal contadas. Seus ouvidos tão cuidadosos não foram capazes de escutar as recomendações, conselhos e alertas dos amigos próximos, familiares ou conhecidos que sempre pareciam ter alguma coisa ruim a dizer sobre aquela que fazia seus dias tão mais intensos. Nem mesmo sua percpeção, sempre alerta, foi capaz de detectar as mudanças bruscas de comportamento, os sumiços mal justificados e os argumentos vazios da estonteante mulher que tornava suas noites quentes e intermináveis.  Estar com ela, olhar seus olhos claros e tocar sua pele macia era tudo o que ele precisava.

Nenhum dos crimes mais complexos solucionados pelo delegado Nóbrega foram capazes de prepará-lo para aquele fim. Incapaz de ver, ouvir ou pensar claramente, Nóbrega não percebeu que vinha sendo enganado e compreendeu com muita dificuldade que havia sido envolvido em uma teia complexa e destrutiva. Deu-se conta de onde havia chegado tardiamente, ao deparar-se com seu apartamento vazio e sua conta bancária devastada.

Infeliz e envergonhado demais para revidar, o orgulhoso delegado Nóbrega entregou seu distintivo na manhã seguinte, abandonou seu posto no distrito de polícia e deixou sem solução o caso mais importante de sua vida.  

Viviane Ribeiro
04/03/2013.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Maldita Sorte




João Esperança ficou conhecido como uma das pessoas mais azaradas daquela cidade e poderia facilmente ter concorrido em algum campeonato nacional, caso houvesse uma competição deste gênero. Ninguém sabia precisar quando ele havia começado a colecionar suas desventuras, mas todos concordavam que elas remontavam de sua mais tenra idade.

Sua saúde nunca foi realmente boa. Passou incontáveis tardes da infância tratando de doenças ou de ossos quebrados das maneiras variadas e estúpidas. Quanto atingiu a idade adulta, tiveram inícios os acidentes de trabalho aleatórios e inacreditáveis: atropelamentos, queimaduras, quedas de alturas relevantes, intoxicações diversas e ferimentos causados por objetos em queda livre tornaram seu histórico médico uma bibliografia quase fascinante. 

Sua vida afetiva poderia ser facilmente parte de alguma obra da literatura dramática. Perdeu todos os animais de estimação de forma trágica, fez poucos amigos e viu quase todos partirem por causa de acontecimentos inesperados ou infelizes. Conheceu a morte de entes queridos prematuramente, amou menos mulheres do que presumia merecer e enfrentou mais despedidas do que gostaria.

João Esperança viveu toda sua vida tentando acreditar que não havia as mãos maldosas do acaso por trás de todas aquelas memórias amargas. Acreditava na sorte e ousava arriscar um percentual inofensivo do seu salário em jogos de loteria, na esperança quase infantil de que aquela maré inabalável de azar pudesse finalmente baixar.

Foi em uma manhã particularmente chuvosa, depois de perder a hora para o trabalho, ficar sem água quente para o banho, queimar as torradas, derramar café no uniforme e ter que descer pelas escadas os treze andares que o separavam do térreo, que as coisas finalmente mudaram para João Esperança. Estampada na capa de todos os jornais, estava a única sequência da loteria na qual ele havia apostado por toda sua vida. O sorteio de um grande prêmio acumulado havia acontecido na noite anterior e só havia um ganhador em todo o país.

Incapaz de acreditar na própria sorte, João Esperança rendeu-se à alegria do momento e comemorou. Ignorando os olhares curiosos ao seu redor, dançou na chuva, sorriu para ninguém específico, gritou para afastar toda a amargura do seu coração e sentiu-se finalmente liberto do imenso azar que lhe acompanhou durante toda a vida. Agarrou-se àquela maravilhosa sensação e mergulhou tão profundamente em seu próprio júbilo que não notou quando o dia ao seu redor foi ofuscado por um repentino clarão e seu mundo se resumiu ao silêncio e à escuridão.
 
Na manhã seguinte, João Esperança sorria um sorriso cinzento na capa de todos os jornais, embaixo das manchetes que noticiavam a inexplicável queda de um raio em pleno centro da cidade e identificava a única vítima fatal do acidente natural como um homem de muito azar. 

Viviane Ribeiro
25/02/2013