terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Turbulência



Quando o aviso de “atar cintos” se iluminou no painel acima de sua cabeça, ela sentiu cada músculo do seu corpo se retesar. Sabia que estava usando um dos meios de transporte mais seguros do planeta, que as estatísticas estavam a seu favor e que a tremedeira que fazia o avião balançar como um brinquedo de pouca resistência era culpa de alguma arruaça meteorológica temporária.

Mesmo assim ela sentiu a inevitável sensação de impotência. E se aquele voo estivesse predestinado a nunca chegar ao seu destino? E se um soluço inesperado nas estatísticas levasse o avião para o chão ou (pior) para o fundo do mar?

Agarrou os braços da poltrona quando uma sacudida particularmente forte agitou a aeronave e não pôde evitar o pensamento: e se depois daquela turbulência viesse simplesmente o nada?

Havia coisas demais que ela ainda precisava fazer: lugares que ainda não havia conhecido, músicas que ainda não havia dançado e livros que ainda não havia lido. Havia um amor a ser declarado, abraços a serem dados e sorrisos a serem distribuídos. Havia pedidos de perdão a serem feitos e alguns a serem aceitos. Havia medos a serem derrotados, crises a serem superadas e conquistas a serem alcançadas. Havia também aquelas promessas de ano novo a serem cumpridas e os incríveis planos montados em mesa de bar que ainda precisavam sair do guardanapo de papel onde foram traçados.

Enquanto a tripulação recolhia às pressas o serviço de bordo e se acomodava entre a segurança de seus cintos, ela iniciou a longa lista de tudo aquilo que faria quando aquele aviso de “atar cintos” se apagasse. Surpreendeu-se ao perceber que a maioria das coisas parecia incrivelmente simples quando analisadas a tantos mil pés de altitude: grande parte delas envolvia palavras menos pensadas, julgamentos menos engessados e atitudes mais espontâneas. Sentiu-se surpreendentemente leve ao imaginar-se colocando cada uma delas em prática e seus pensamentos vagaram para tão longe daquela enorme caixa metálica que ela sequer notou quando a aeronave parou de balançar, o temido aviso de “atar cintos” se apagou e as luzes de seu destino começaram a despontar no meio da escuridão daquela noite sem estrelas.

Ela tinha um plano perfeito para ser colocado em prática quando o avião pousou e as portas foram colocadas em modo manual. Sentia-se determinada, ousada e destemida para fazer o que quisesse. Teria começado naquela noite mesmo, mas assim que ligou o smartphone de última geração foi inundada pelas mensagens instantâneas do grupo dos amigos, da família e da ioga. Distraiu-se verificando quantas pessoas tinham curtido o check in no aeroporto virtual de sua rede social, ocupou-se em ler os novos e-mails que caíram em sua caixa de entrada durante o voo e já não parecia capaz de se lembrar da enorme turbulência que havia acabado de enfrentar.

Os planos audaciosos se perderam entre a expectativa de que sua mala não tivesse sido extraviada, a irritação causada pela espera interminável por um táxi e a sensação esquisita de que havia deixado algo importante no avião, embora estivesse de posse de todos os seus pertences de valor.
19/11/2015

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Rompimento

Quando ela decidiu que finalmente era hora sair da vida dele, cruzou a porta da frente sem olhar para trás. Tinha certeza de que aquele momento chegaria, mesmo assim esperou até que se tornasse inadiável. Uma grande parte de si sabia, desde o início, que aquela era uma situação perdida. Mas a outra pequena parte era insistente e persuasiva, por isso ela decidiu ficar.

Contentava-se com a companhia distante e silenciosa dele, mesmo nos momentos em que a vontade de tocá-lo era tão intensa que quase conseguia lhe causar dor. Escutava com atenção enquanto ele falava sobre seu dia, mesmo sabendo que as palavras não eram realmente destinadas a ela. Passava horas a fio assistindo filmes clássicos ou ouvindo músicas inteiramente desconhecidas a ela, só pelo prazer de sentir-se conectada a ele.

Ela sabia que estava vivendo uma grande ilusão e, a cada novo nascer do sol, percebia que não conseguiria sustentá-la por muito mais tempo. Já não podia tolerar a idéia de não ser a dona dos pensamentos que o mantinham acordados até mais tarde em algumas noites, nem o motivo dos sorrisos que às vezes ele deixava escapar enquanto mexia no celular. Sofria lentamente quando ele não dormia em casa ou quando chegava tarde da noite com um ar sonhador e um perfume desconhecido exalando de suas roupas.

Convenceu-se de que havia chegado a hora de partir numa noite de lua cheia particularmente deslumbrante, quando a verdade tornou-se evidente demais para ser ignorada. Havia música, flores e um cheiro de comida fresca na casa. Havia roupa de cama nova, toalhas extras, velas acesas e a certeza de que nada daquilo havia sido preparado para ela.

Quando ela decidiu que finalmente era hora sair da vida dele, cruzou a porta da frente sem olhar para trás. Adoraria ter derramado lágrimas que ajudassem a amenizar o peso em seu coração, mas sabia que chorar não era mais um luxo ao qual podia se permitir.

Afastou-se da casa com passos tranquilos e seguiu em silêncio pela alameda florida, perdida entre seus pensamentos e a tristeza contra a qual havia lutado tão bravamente até aquele momento. Colheu algumas flores no caminho, despediu-se das estrelas e enveredou por um complexo emaranhado de ruazinhas até finalmente atingir sua última parada. 

Os grandes portões do cemitério da cidade estavam trancados àquela hora da noite, mas ela conseguiu cruzá-los sem nenhuma dificuldade. Encontrou sua lápide depois de uma curta caminhada pelos jardins desertos, pousou os cravos sobre o anjo tristonho que guardava seu sono eterno e entregou-se ao inevitável. No final das contas, seria mais fácil parar de resistir à morte do que continuar alimentando ilusões sobre aquele amor que sempre esteve predestinado a nunca acontecer.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Prioridade


Ele decidiu que aquela linda tarde de verão seria perfeita para testemunhar o fim da sua vida. Escolheu o imponente edifício comercial do escritório onde trabalhava como palco para seu grand finale. Naquele que seria seu derradeiro dia, despediu-se dos colegas com um displicente “até breve”, tomou o caminho das escadas e dirigiu-se, sem pressa, para o último andar do edifício. Com uma serenidade inabalável, pôs-se a subir os degraus de concreto e repassou seu plano dramaticamente simples: subiria até o último andar, pularia lá de cima e daria fim à própria vida. Sem despedidas, nem cartas, nem avisos.

Atingiu o telhado sem cruzar com nenhuma viva alma. Sabia que os poucos seguranças que guardavam o edifício estariam distraídos àquela hora, ocupados em garantir uma saída tranquila para o enorme fluxo de pessoas que esvaziava o prédio. Sorriu ao concluir que teria uma grande platéia e abriu a última porta corta fogo que o separava do topo do arranha-céu.

A intensa luz do fim da tarde atingiu seus olhos  e ele precisou piscar algumas vezes para se acostumar à repentina claridade. Sentiu-se tentado a dedicar alguns minutos de atenção ao sol que começava a se pôr no horizonte, mas sabia que não deveria se distrair. Com passos firmes, caminhou na direção do parapeito e pôs-se a procurar o apoio que precisava para elevar o corpo acima da contenção.

- Ei! – uma voz feminina interrompeu seus movimentos, trazendo-o bruscamente de volta à realidade. A dona da voz estava sentada no parapeito, apenas alguns metros adiante. – O que você está fazendo?

Contra a luz alaranjada do pôr-do-sol, não era possível ver detalhes do rosto que quebrou sua concentração, mas o tom da voz transbordava irritação. 

- Eu ia pular. – ele retrucou, com simplicidade.

- É, eu percebi que você ia pular. – a silhueta rebateu, com uma nota de sarcasmo. – Mas eu cheguei primeiro. Você meio que está me atrapalhando.

Ele precisou de alguns segundos para se recuperar da surpresa causada pelo anúncio. Abriu a boca duas vezes, antes de finalmente conseguir articular uma resposta.

- Eu posso pular na sua frente? Tenho motivos mais fortes para estar aqui.

A mulher sentada no parapeito fez um movimento perigosamente brusco e, por um breve segundo, ele achou que teria seu grande momento roubado. O que ela fez, no entanto, foi recolocar os pés  de volta à segurança do telhado e encará-lo através da estonteante luz do fim de tarde. Ele ainda não era capaz de ver os detalhes do rosto, mas entendeu que o grandioso plano ao qual se dedicara com tanto empenho havia sido arruinado.

- Me prove. – ela limitou-se a responder.

- O quê?

- Vamos apostar pra ver quem tem o motivo mais forte. Você me conta o seu e eu te conto o meu. Quem tiver o melhor argumento, ganha o direito de pular. Quem perder, vai embora e escolhe outro dia. O que acha?

O desafio era tão absurdo quanto a própria situação, por isso pareceu perfeitamente razoável naquele momento.

- Tudo bem. – ele concordou, dando de ombros. – Mas, antes de começarmos, você desce daí. Precisamos ficar em condições iguais.

A mulher deixou escapar um gargalhada, antes de aceitar a mão que lhe foi estendida. A risada era cristalina, espontânea e contagiante.

- Então,  você começa. – ela anunciou, quando os dois se apoiaram no guarda-corpo. – Me convença de que merece mesmo pular antes de mim.

Por breves segundos, ele se arrependeu da aposta. Não fazia o menor sentido falar sobre uma decisão tão definitiva para uma perfeita estranha. Cogitou dar meia volta e desaparecer pelas escadas, mas as palavras vieram antes que pudesse religar os implacáveis filtros de sua mente: falou sobre a opressora sensação de solidão que o perseguia, sobre como nunca havia realmente encontrado seu lugar naquele mundo, sobre seus esforços em se encaixar em padrões inalcançáveis e atingir expectativas que jamais foram efetivamente suas. Falou sobre sonhos abandonados, sobre a reciprocidade que nunca conheceu e sobre como aquele salto no vazio lhe parecia a única opção possível para se livrar de amarras tão fortes e sufocantes.

- Agora é sua vez. – ele anunciou, quando sentiu-se vazio de novas palavras. Não soube precisar por quanto tempo falou, mas percebeu que o sol havia desaparecido no horizonte e não se lembrava de já ter visto um início de noite tão glorioso como aquele.

Ela respirou fundo e balbuciou algumas palavras inseguras, antes que finalmente se entregasse à libertadora sensação de falar. Contou sobre sua constante inquietação e sobre a desesperadora certeza de que havia desperdiçado cada um dos seus dias tentando vivê-los intensamente. Falou sobre seu impulsivo desejo de liberdade e de como ele a impedia de se conectar às pessoas. Falou sobre o medo incontrolável de jamais fazer a diferença na vida de alguém, sobre as lições dolorosas que havia aprendido por causa disso e sobre como achava que poderia encontrar libertação naquele salto em direção ao fim. Deixou escapar um suspiro exausto quando não encontrou nenhuma outra palavra a ser dita. 

Àquela altura, uma estonteante lua cheia já começava a subir no horizonte e a cidade abaixo deles cintilava de forma artificial. A noite recém chegada trouxe uma brisa suave, que substituiu com benevolência o calor das horas anteriores. Acima deles, as pequenas luzes das antenas se acenderam e ambos perceberam que precisavam dizer alguma coisa.

- Você não pode pular. – ele anunciou primeiro, com o tom de voz repleto de convicção. Não conseguia entender como alguém tão livre podia pensar em colocar fim a uma vida tão empolgante. – Não, antes de mudar a sua opinião sobre o guacamole.

Ela foi incapaz de manter a seriedade e sua risada contagiante despedaçou a tensão daquele momento.

- Eu odeio guacamole! – foi tudo o que conseguiu responder. Mesmo em meio à escuridão, dava pra perceber que ainda sorria.

- Você odeia as lembranças que uma noite ruim em um restaurante mexicano te trouxeram. Vamos combinar uma coisa? Eu te levo pra comer um guacamole de verdade, no melhor restaurante da cidade. Se, mesmo depois disso, você ainda odiar, pode pular na minha frente. Combinado?

- Combinado. – ela respondeu, erguendo as mãos em sinal de rendição. Sentiu que precisava ganhar tempo para que fosse capaz de convencer alguém tão cheio de potencial a desistir de dar fim à própria vida. – Com uma condição: que você dê uma chance ao karaokê.

- O quê? Não! Eu detesto karaokê! – ele protestou, incapaz de disfarçar a diversão que o desafio lhe havia despertado.

- Você mesmo disse que nunca foi a nenhum! Não dá pra detestar alguma coisa, só porque seu pai detesta. Já está decidido: eu vou te levar pra conhecer o karaokê mais animado da cidade. Se você realmente não for capaz de se divertir depois de cantar e desafinar, sem se preocupar com a opinião dos outros, eu te deixo pular na minha frente. Fechado?

- Fechado. – ele concordou, aceitando a mão estendida em sua direção para selar o pacto. – Vamos começar com o guacamole? O restaurante que eu falei não fica muito longe daqui.

- Tá certo. – ela concordou. – Será que a gente consegue umas doses de tequila por lá? Não tem nada melhor do que tequila para despertar o cantor que existe escondido em cada um de nós.

Os dois se afastaram do parapeito sem olhar para trás e caminharam pela escuridão quase completa do telhado, com passos cuidadosos de quem não quer correr o risco de se machucar. Enquanto desciam os longos lances de degraus que os separavam do andar térreo, ele descobriu que o sorriso dela era tão encantador quanto o som de sua risada e ela percebeu que ele tinha um olhar tão envolvente quanto sua voz.

Naquela noite, ela descobriu que realmente não havia experimentado o verdadeira guacamole e ele concluiu que um karaokê era um pouco mais do que um amontado de cantores fracassados tentando inflar o próprio ego. Na semana seguinte, ela descobriu que comida tailandesa não era tão ruim quanto havia imaginado e ele se deu conta de que era um excelente jogador de sinuca. Dois meses depois, após uma noite de bebida, música e um longo beijo de boa noite, os dois concordaram que ainda havia muitas coisas que precisavam experimentar juntos, antes de decidir quem pularia primeiro.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Reciprocidade



Ela percebeu o que sentia quando já era tarde demais. Os sintomas não lhe eram exatamente inéditos: os pensamentos vagavam para longe sem sua autorização, as desculpas para tê-lo por perto surgiam com uma fluidez natural e o tempo voava quando eles estavam juntos. Havia risadas, assuntos intermináveis e confortáveis momentos de silêncio.

Havia também a certeza de que aquilo tudo era coisa da sua cabeça e de que aquele sentimento estava seguindo por uma via de mão única. Era óbvio que ele não estava interessado e que ela precisava fazer alguma coisa para sair daquela situação antes que se visse amarrada a algum tipo clichê de amor platônico.

Decidiu que distrair a mente seria a solução dos seus problemas: desviou a atenção dedicada a ele para as dúzias de livros e filmes recomendados pelos amigos ao longo dos últimos meses. A lista era grande e repleta de ótimas sugestões, mas sua estratégia mostrou-se infrutífera quando ela percebeu que vinha compartilhando os títulos favoritos com ele e criando ainda mais desculpas para procura-lo.

Mudou o foco para o esforço físico: sobrecarregou o corpo com uma bateria de exercícios, numa tentativa de fazer o cansaço levar a melhor sobre os pensamentos que teimavam em fugir para perto dele enquanto ela estava acordada. Matriculou-se nas aulas de spinning, alongamento, muai thay e ainda entrou na equipe de corrida do condomínio. Terminava o dia tão exausta que só sobrava tempo para um banho e uma refeição modesta, mas logo percebeu que o novo plano também não estava surtindo o efeito esperado: as horas de sono eram povoadas por sonhos estranhos e sem cabimento, que ela dividia com ele só para engrossar o coro das risadas que sempre pontuava as longas conversas entre eles.

Recorreu, então, a uma medida mais drástica: tomada por um rompante de coragem, embarcou sozinha em uma viagem para o lugar mais longe que conseguiu pagar. Concluiu que novas experiências ocupariam todo o espaço vazio da sua cabeça e trariam de volta sua paz de espírito. Não contava, porém, que encontraria pensamentos sobre ele em cada esquina da nova cidade. Antes do final do terceiro dia já estava compartilhando todas novidades e uma razoável quantidade de fotos de todos os lugares que tinha certeza de que ele adoraria conhecer.

De volta à rotina, reuniu as amigas mais próximas em uma mesa de bar e abriu o coração em busca de ajuda. Os diagnósticos para sua crise foram os mais variados e as soluções para os problemas igualmente descabidas: algumas sugeriram um novo romance para curar o amor impossível, outras sugeriram uma noite de prazer sem compromisso e houve até a sugestão de uma visita a um infalível guru do amor. Voltou para casa muitas horas e drinks depois, mais confusa e alcoolizada do que havia saído.

Foi só quando conectou o celular descarregado à tomada que finalmente fez-se a luz. A solução pareceu-lhe tão absurdamente óbvia naquele momento que ela não soube dizer porque não havia pensado naquilo antes. Encorajada pelo excesso de álcool em seu sangue e auxiliada pelo corretor ortográfico, ela colocou em ação sua brilhante idéia: pegou o celular e escreveu para ele as palavras que tanto atormentavam sua mente e agitavam seu coração. Aguardou com a respiração presa enquanto a mensagem era entregue ao destinatário, muito mais rápido do que ela esperava, e mal pôde acreditar quando a tela do smartphone se acendeu e revelou um simples "eu também". Sorriu, abraçou-se ao celular, largou-se na cama e adormeceu antes mesmo de calcular quanto tempo da sua vida havia desperdiçado para chegar até ali.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Em Pares


Sabrina se considerava uma mulher perfeitamente normal: sua aparência era bastante comum, seu QI confortavelmente dentro da média e suas habilidades pouco dignas de destaque. Havia algo, no entanto, que a colocava em uma categoria especial, embora ela não gostasse de pensar muito sobre o assunto: os grandes acontecimentos de sua vida vinham sempre em pares.

Sabrina foi planejada e passou a ser amada desde o momento em que os dois tracinhos do exame de farmácia apontaram sua existência. O dia de seu nascimento foi aguardado com ansiedade pelos seus pais, mas nenhum deles podia esperar que sua chegada seria acompanhada de um furacão de escala alarmante, que levou pelos ares sua casa e todo o enxoval preparado com carinho e cuidado ao longo dos nove meses de gestação. 

Aos quatro anos Sabrina e sua mãe encontraram um filhote de gato abandonado enquanto voltavam da escola e decidiram que ele precisava de um lar, cuidados e amor. Acharam que ele se daria muito bem com o filhote de cachorro que adorava correr pelo espaçoso quintal na nova casa, mas nunca tiveram a chance de apresentar os dois mascotes: encontraram o pobre cãozinho afogado na piscina e ninguém soube explicar como ele havia passado pelo cercado que deveria mantê-lo fora de perigo. 

Aos oito anos Sabrina realizou o sonho de ver o rosto do seu irmãozinho. Pedia por ele em todas as orações sonolentas que fazia antes de ir pra cama e chegou, até mesmo, a arriscar um acordo com a Fada do Dente. Sentiu-se agradecida por vê-lo ali, tão pequeno e indefeso na incubadora da maternidade, mas estava triste demais para dizer o quanto ele era bem vindo: ainda teria que lidar com a ausência irreversível e devastadora de sua mãe, que não resistiu a complicações no parto e se foi antes que pudesse ver o belo presente que havia deixado para sua preciosa filha.

Aos doze anos Sabrina ganhou seu primeiro sutiã. Era lindo e delicado como os das propagandas de revista e ela sentiu-se uma mulher incrivelmente adulta quando meteu-se dentro dele e atravessou a rua para exibir o troféu à sua melhor amiga. Mas não houve gritinhos ou risadas naquela manhã: a  fiel companheira de passeios de bicicleta, festas do pijama e segredos compartilhados na casa da árvore havia sido levada às pressas em uma mudança na calada da noite, depois que uma briga doméstica chegou às raias da violência e aquele lar deixou de ser um lugar seguro para uma criança.

Aos dezessete anos Sabrina foi aceita como bolsista na faculdade mais conceituada do estado. Havia sido uma disputa acirrada e a carta tão esperada foi recebida com tamanha comemoração, que quase não foi possível ouvir chegada do oficial de justiça e da ação de despejo que ele trazia dentro de sua maleta de couro. 

Aos vinte e um anos Sabrina encontrou o amor verdadeiro. Era suave, despretensioso e inevitável como todos disseram que seria. Ela foi correspondida na mesma proporção e quando ouviu o primeiro "eu te amo", sussurrado ao seu ouvido embaixo de um céu pontilhado de estrelas, fechou os olhos, suspirou resignada e esperou. Afinal, todos os grandes acontecimentos de sua vida vinham aos pares.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Crise do Cupido



O encontro entre Mariana e Pedro estava escrito nas estrelas, mesmo assim o amor não desabrochou: Mariana sorria quando pensava no rapaz, mas todas as vezes em que surgia uma oportunidade de falar sobre seus sentimentos, a tela do smartphone de Pedro se acendia e ela se convencia de que não teria nenhuma chance contra a dona das mensagens enviadas a ele. Pedro tinha pouco controle sobre a vontade de estar perto de Mariana. Sempre encontrava desculpas criativas para conseguir algumas horas de conversa e novas chances de encontrar aqueles encantadores olhos cor de mel, mas Mariana não correspondia seus sentimentos; uma hora ela parecia prestes a dizer o que ele tanto esperava ouvir e no minuto seguinte recuava como se simplesmente tivesse mudado de ideia. Apesar de suas várias tentativas, os encontros terminavam apenas com um beijo no rosto, um abraço e um “boa noite” sussurrado ao pé do ouvido. Com o tempo Mariana passou a declinar dos convites de Pedro e ele decidiu que talvez devesse se render à insistência daquelas mensagens que inundavam seu telefone muito mais vezes por dia do que ele gostaria de receber. 

João e Luísa tinham se apaixonado à primeira vista, mas a coisa toda nunca passou de alguns beijos quentes, uma noite entre lençóis e promessas de um segundo encontro. Eles descobriram muitas coisas em comum enquanto bebiam cerveja barata e desfrutavam da reserva de seis horas do motel no centro da cidade: amavam a natureza, odiavam os empregos, sonhavam com uma viagem ao redor do mundo e com um labrador no quintal de casa. Trocaram contatos, mas Pedro nunca chegou a enviar o convite de amizade para o Facebook de Luísa: ele achou que viu festas, bebidas e homens demais nas fotos compartilhadas por ela na rede social e decidiu que não queria ser apenas mais um nome em uma extensa lista de contatos. Luísa esperou por um telefonema, uma mensagem ou um convite em suas redes sociais, mas não ficou realmente surpresa quando nada aconteceu; as amigas não se cansavam de lembrar que ela nunca deveria se apegar a casos de uma noite. Poucos dias depois já não houve mais espera, nem recordações sobre a viagem de mochilão que havia sido combinada entre beijos quentes e suspiros de prazer.

Claudia amava Carlos e tinha certeza de que eles seriam felizes para sempre, até o dia em que ela abriu sua conta no Instagram. Descobriu que Carlos tinha uma quantidade desnecessária de mulheres como seguidoras e que uma delas curtia apenas as fotos em que ele aparecia sozinho. Carlos dizia que ela estava fazendo tempestade em um copo d´água, mas Claudia começou a desconfiar que talvez estivesse confiando demais nele. Houve discussões e mais suspeitas, até que um bate boca virtual com a seguidora assanhada levou ao chão os alicerces fragilizados do relacionamento. Carlos terminou o namoro afirmando que precisava de uma mulher mais equilibrada e Claudia concluiu que o ex-namorado era o maior cafajeste que já havia caminhado sobre a face da terra.

As histórias de amor fracassadas se multiplicavam a uma velocidade alarmante e pesavam sobre os ombros dos pobres anjos Cupido como um fardo desconfortável. Havia aqueles que achavam que a mira deles já não andava tão boa e outros que tinham certeza de que o problema estava nas flechas. Havia, ainda, os que achavam que o contingente dos Cupidos tinha sido reduzido, talvez mobilizado para atender outros tipos de problemas celestiais de nível mais elevado. Mas a verdade era que estavam todos enganados: os Cupidos vinham trabalhando mais do que nunca, sua mira permanecia impecável e as flechas eram tão boas como antigamente. 

A crise dos Cupidos já havia sido reportada para os anjos Serafim, que prometeram subir o problema para o último nível. A sabedoria dos anjos Querubim também havia sido requisitada para ajudar a lidar com aquela turbulência, mas a busca de uma solução vinha se mostrando uma tarefa muito complexa e não havia previsão para melhora no cenário a curto prazo. Enquanto as respostas não vinham, os Cupidos continuavam vagando sem descanso pelo mundo, atirando suas flechas e torcendo para que elas passassem através dos retângulos metálicos que os seres humanos mantinham erguidos quase vinte e quatro horas por dia na altura de seus corações.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Fuga para a Polinésia




Ela mal pôde acreditar na própria ousadia quando recebeu o amontoado de papéis das mãos do atendente. Agradeceu os votos de uma boa viagem e conferiu mais uma vez o seu destino: Polinésia. A quantidade de cartões de embarque denunciava que seria uma viagem longa e cheia de escalas, mas quem se importava? Ela não tinha a menor ideia de onde ficava a Polinésia e achou razoável que fosse um lugar tão distante a ponto de merecer sua ignorância. 

Apanhou a pequena maleta de mão e caminhou resoluta na direção do portão de embarque. Dentro da bagagem não havia nada mais além de documentos pessoais essenciais, três mudas de roupas e aquele livro que havia recebido de presente no último aniversário e deixado sobre a mesa de cabeceira como um lembrete de que precisava tirar um tempo para si. A parafernalha eletrônica que havia comandado sua vida nos últimos anos tinha ficado para trás, juntamente com as chaves do carro e do apartamento. Sentia-se incrivelmente leve sem o peso de todas aquelas coisas.

Esperou sem pressa pela sua vez de passar pelo Raio-X. Pela primeira vez em sua vida não precisou esvaziar os bolsos ou tirar os saltos caros para escapar do apito infernal do equipamento. Cruzou o pequeno portal metálico com um sorriso no rosto, recolheu sua maleta do outro lado e caminhou com passos tranquilos até o guichê da imigração.

Entregou o passaporte e contou uma pequena mentira quando foi questionada sobre o seu destino e quanto tempo permaneceria por lá. Fingiu saber exatamente onde ficava a Polinésia, inventou uma viagem de férias e foi liberada sem outras perguntas. Sorriu ao imaginar qual seria a reação do agente se ela tivesse lhe contado que havia acabado de escolher o destino ao acaso, depois de constatar que aquele seria o primeiro voo a decolar onde ela poderia embarcar. Guardou o passaporte e o amontado de bilhetes de embarque no bolso  do casaco e só então lembrou-se de que não havia comido nada desde o início da manhã. Seu estômago roncou com um protesto e ela sentiu-se grata por descobrir que ainda tinha alguns minutos para uma boa refeição antes de embarcar.

Sentou-se no pequeno restaurante da sala de embarque e escolheu no cardápio tudo aquilo que havia abolido de sua alimentação por incontáveis anos: uma generosa taça de vinho, um prato de massa feito com a farinha mais branca e uma sobremesa que incluía alarmantes porções de chocolate e açúcar. O cérebro condicionado aos padrões de beleza arriscou-se a calcular a quantidade de calorias da refeição, mas os pensamentos foram rapidamente afastados junto com todas as restrições que lhe haviam sido impostas por tanto tempo. 

Comeu sem pressa e percebeu que havia esquecido como era o prazer de uma refeição sem as distrações trazidas pelos smartphones cada vez mais modernos: não houve nenhum e-mail, mensagem ou ligação urgente durante aquele jantar. 

Quando finalmente chegou ao portão de embarque, já havia a fila característica das pessoas que pareciam ter pressa para tudo. Ela sabia que seu cartão de fidelidade da mais alta patente lhe garantia prioridade sobre todas as pobres almas que se amontoavam diante do portão, mas decidiu sentar-se e esperar com paciência pelo fim do tumulto. Embarcou somente na última chamada e sentiu-se uma tola por nunca ter feito aquilo antes.

Ocupou seu lugar na primeira classe, sabendo que aquele assento de couro havia custado alguns meses de trabalho da maioria da população, mas então lembrou-se de todo aquele dia infernal e o remorso desapareceu imediatamente. Aquela seria sua viagem da libertação, afinal de contas. Tudo deveria ser feito em grande estilo.


Recebeu os mimos oferecidos pelos comissário de bordo para todos os que ocupavam aquele lado da cortina, acomodou-se em sua poltrona super confortável e finalmente sentiu o corpo relaxar. O vinho e o chocolate haviam feito seu trabalho e ela mal pôde acreditar na sensação de tranquilidade que experimentou naquele momento. 

Qualquer um que passasse pelo corredor e visse aquela mulher de meia idade com um semblante tão leve, não seria capaz de acreditar que poucas horas antes ela havia sofrido o golpe mais duro de sua vida: a alta executiva da multinacional do ramo de alimentos mais famosa do país havia perdido seu posto para um executivo mais jovem e ambicioso, que não parecia se importar com todos os anos que ela havia desperdiçado para chegar até ali. Seu rosto estaria estampado nas manchetes dos jornais no dia seguinte e toda sorte de comentários seria tecido a respeito da mudança.

Como não havia um marido companheiro ou uma família amorosa para colocar o chão de volta embaixo de seus pés, ela fez exatamente o que desejou fazer em tantas outras manhãs difíceis: reuniu o essencial para uma rápida partida, trancou a suntuosa cobertura no bairro de classe alta e deixou com o porteiro uma carta escrita às pressas e lacrada dentro de um envelope elegante, destinada a qualquer um que se desse ao trabalho de ir até lá procurá-la. Tomou o primeiro táxi rumo ao aeroporto e deteve-se diante do painel que apresentava as próximas partidas previstas, apenas por tempo o suficiente para escolher seu destino.

- Polinésia. – murmurou, quando esvaziou os pensamentos de toda a loucura daquele dia e acomodou a cabeça no encosto da poltrona. Sorriu ao perceber que estava prestes a realizar o velho desejo de desaparecer do mapa e deixou-se embalar pelo sono que aproximou-se lenta e suavemente, antes mesmo que ela pudesse se lembrar de que não havia tomado nenhum dos seus calmantes. 

O sorriso ainda estava em seu rosto quando um comissário de bordo constatou sua morte, dez horas mais tarde, depois de infrutíferas tentativas de acordar a passageira que deveria desembarcar para sua próxima escala. Seu semblante descansado não se alterou com o reboliço causado por um cadáver a bordo, nem com a constatação tardia de que uma doença traiçoeira e silenciosa tomara o controle antes que ela pudesse descobrir onde ficava a Polinésia.

domingo, 29 de março de 2015

Divórcio Coletivo



Todos ficaram arrasados quando souberam da separação da Alê e do Fê. Era unânime a opinião de que eles eram um casal bonito de ver, mas a maioria também concordava que o romance já não andava muito bem das pernas.

Foi a Alê que tomou a iniciativa de dar fim à relação, depois de muitas consultas às amigas. O diagnóstico de todas era irrefutável: o amor parecia ter chegado ao fim e um par de chifres inevitavelmente viria a seguir. Até a manicure participou do veredito, pontuando o debate com dois ou três casos de clientes que já tinham passado por aquele drama e sobrevivido para contar história.

O Fê foi pego de surpresa pela conversa definitiva, cinco minutos antes do Flamengo entrar em campo para o primeiro clássico realmente interessante daquele Campeonato Carioca. Escutou o desabafo da amada com paciência, tentou argumentar duas ou três vezes e chegou até a pedir por uma nova chance, mas as insistentes toalhas molhadas deixadas em cima da cama, o futebol com a turma do escritório às sextas-feiras e aquela viagem a Paris que nunca saiu do papel pesaram contra ele. O Fê perdeu mais que o Clássico dos Milhões naquela noite de quarta-feira.

Como a Alê não mudou de ideia na manhã seguinte, o Fê foi passar uns dias na casa do Paulo, esperando pelo fim do que deveria ser uma crise de TPM das fortes. Os companheiros do futebol recomendaram que sumisse do mapa por um tempo, pra que a mulher sentisse falta, percebesse que havia exagerado e ligasse pedindo pelo seu retorno. O Fê achou uma boa ideia e seguiu o conselho.

A Alê sofreu com o sumiço do Fê e, pelos dias e noites que vieram a seguir, foi prontamente confortada pelo esquadrão de amigas que não se cansava de dizer que ela deveria ser forte, que o melhor a fazer era não procurá-lo e que o desaparecimento do rapaz denunciava que ele já estava alguns passos à frente no processo de superar o rompimento.

Passada uma semana sem que o Fê desse sinal de vida, a Alê decidiu que era hora de seguir em frente. Depois de um domingo de chuva, muito choro, comédia romântica e uma panela de brigadeiro, acordou na segunda-feira decidida a dar a volta por cima: matriculou-se no Yoga para encontrar paz de espírito, na academia para recuperar a boa forma e permitiu-se algumas horas no shopping para elevar a auto estima. Estava encerrado o ciclo Alê e Fê.

O Fê ficou uma arara quando uma amiga em comum anunciou ter encontrado a Alê na aula de spinning. Recebeu a notícia de que ela estava com uma “cara ótima” e um “astral super pra cima” com uma pontada de raiva, mas decidiu que havia chegado a hora de ouvir os conselhos do amigo de infância e tocar o barco. Entrou pro time de futevôlei, alterou o status do Facebook e surpreendeu-se com a quantidade de convites “para um choppinho” que recebeu de amigos dos quais ele já nem se lembrava direito.

Quando descobriu que o Fê tinha trocado status do Facebook, o chão da Alê sumiu. Ele, que não acessava a rede social nem pra curtir as fotos onde era marcado, de repente estava anunciando pra todo o mundo (inclusive o virtual) que estava solteiro? Não era cedo demais para aquele grito de liberdade? A novidade se espalhou rapidamente e as amigas mais próximas não paravam de enviar mensagens com atualizações em tempo real sobre a repercussão da notícia. Qualquer um que curtia a mudança de status do Fê ou cometia o atrevimento de comentar a atualização tinha seu perfil minuciosamente analisado. Ao final do dia, a Alê tinha uma lista de nomes de mulheres que poderiam representar uma ameaça, embora ela não soubesse exatamente o que fazer com o dossiê digital. Sem uma ideia melhor, afogou as mágoas em um pacote de biscoito Maizena com Nutella, chorou mais um pouco e terminou a noite deletando fotos do casal de todas as redes sociais. 

A fofoca alcançou o círculo familiar e as ligações não tardaram a começar. A Alê explicou pra mãe que o Fê já não vinha sendo o mesmo há algum tempo e que só não terminou porque lhe faltava coragem. O Fê esclareceu pra irmã que a iniciativa tinha partido da Alê e que ele não pôde fazer mais nada quando recebeu a notícia. Os dois ouviam atentamente os conselhos de entes queridos, amigos de infância e colegas mais chegados: essas coisas eram assim mesmo, a vida tinha que seguir em frente e logo, logo eles encontrariam outra pessoa para fazê-los sorrir outra vez. 

O Fê decidiu que já era hora de sair da casa do amigo e procurar um canto só pra ele. Encontrou um apê mobiliado e alugou para uma temporada. Agora que tinha mais espaço, decidiu que era o momento de voltar à sua casa para buscar as roupas e outros objetos que estavam fazendo falta. Mandou um whatsapp para a Alê, que recebeu a mensagem, leu, mas só respondeu no dia seguinte: a chave estaria na portaria. Ele deveria pegar o que precisasse e sair antes que ela estivesse de volta.

A Alê não acreditou na cara de pau do Fê quando ele mandou uma mensagem pedindo para ir buscar “suas coisas”. Repassou a mensagem para o grupo de amigas do whatsapp, acompanhou o longo debate que seguiu-se ao envio do print de tela e acatou com determinação as instruções passadas pelas confidentes. Só respondeu no dia seguinte, para mostrar que estava ocupada demais para dar atenção a assuntos sem importância.

Quando chegou em casa, o Fê encontrou o apartamento bem mudado. Não havia mais fotos dos dois em nenhum lugar visível, alguns móveis tinham sido trocados de lugar e uma garrafa de um vinho caro ocupava uma das prateleiras da geladeira. Depois de colocar na mala as roupas que faltavam, o Fê lembrou-se do grill que a Alê nunca usava e achou que seria uma boa ideia ter alguma coisa pra esquentar os sanduíches no novo apartamento. Deixou um bilhete para avisar, embora tivesse certeza de que ela nem daria falta.

A Alê ficou louca de raiva quando chegou em casa e leu o bilhete deixado pelo Fê. Não podia acreditar que ele já havia começado a dividir os bens que os dois adquiriram juntos, antes mesmo que eles conversassem sobre o assunto! Ligou para a irmã mais velha, que havia passado por todo aquele aborrecimento há dois anos atrás e sentiu-se reconfortada ao perceber a indignação não era coisa da sua cabeça. E mais: foi fortemente recomendada a procurar um advogado tão logo o dia nascesse, para formalizar a separação e a partilha dos bens. Se o Fê já havia levado o grill, não demoraria a voltar pedindo as chaves do apartamento.

O palavrão que o Fê soltou quando recebeu o e-mail de uma desconhecida que se dizia advogada da Fê ecoou por todo o andar do escritório. O texto de palavras difíceis e expressões rebuscadas sugeria um acordo para divórcio amigável e uma planilha anexada relacionando todos os (poucos) bens do casal arrematava o desaforo. Os colegas do departamento jurídico foram escalados para ajudá-lo a traduzir o palavreado complicado e, em menos de quinze minutos, ele já tinha o suporte emocional e profissional de dois advogados. A indignação por conta da ambição desmedida da ex-mulher contagiou a ala masculina da empresa e o Fê achou por bem seguir o conselho de gente que já tinha passado por aquele tormento: a coisa mais certa a fazer era ir logo ao cartório e assinar uma procuração para ser representado por um advogado. Tudo preto no branco, conduzido por gente que entendia do assunto.

Quando a advogada da Alê ligou falando sobre a resposta desagradável que recebeu do advogado do Fê, o tempo fechou. Além da sugestão de partilha ter sido recusada, o advogado havia solicitado que fossem retirados da planilha de bens a bicicleta, a televisão do quarto de hóspedes e o PS3. A Alê se revoltou com a mesquinharia e deu carta branca pra advogada forçar a barra e ameaçar um processo judicial. Nada sairia da lista, nem mesmo o PS3 que ela sequer sabia como funcionava.

Depois de semanas de trocas de e-mails, notificações extrajudiciais, autenticações e reconhecimentos de firma, chegou o dia marcado para a assinatura do acordo para o divórcio. Com os valores de mercado devidamente atualizados, tudo o que estava dentro do apartamento do casal seria dividido por dois. Exceto o PS3 do Fê e o notebook da Alê.

O Fê foi o primeiro a chegar e a Alê só apareceu no minuto em que o nome do casal foi chamado. Entraram em uma pequena sala do cartório, sentaram-se em lados opostos da mesa retangular e, pela primeira vez em dois meses, se olharam. Foi uma troca de olhares longa, daquelas que só os dois conseguiam sustentar. E, de repente, o mundo ao redor deles pareceu silenciar.

O Fê achou que a Alê estava ainda mais bonita que da última vez que a viu. Ela havia perdido alguns dos quilos contra os quais praguejava todas as manhãs, tinha cortado o cabelo e pintado de uma cor que destacava ainda mais os olhos claros pelos quais ele se apaixonou desde a primeira vez em que a viu, no churrasco do Pedrinho. Por que os dois estavam em lados opostos daquela mesa mesmo?

A Alê achou que o Fê estava um espetáculo naquela camisa rose. A cor destacava sua pele morena e ele parecia ainda mais bronzeado naquela manhã. Seria a luz da sala? Também havia deixado a barba crescer de novo, do mesmo jeito que usava da primeira vez em que ela o viu, lindo e sorridente, no churrasco organizado pelo antigo namorado da Carol. O que havia acontecido para que os dois chegassem àquele ponto?

O momento de contemplação foi encurtado pelo representante do cartório. Todos pareciam apressados para encerrar aquela formalização e não houve sequer a sugestão para uma tentativa de reconciliação. Com honorários já combinados, papelada impressa e canetas a postos, o acordo foi assinado e a separação oficialmente selada. Os advogados trocaram apertos de mãos educados, o representante do cartório indicou o caminho da saída e, antes que a Alê e o Fê pudessem se dar conta, estavam sozinhos no hall de elevadores do edifício comercial. Restou aos dois o silêncio constrangedor e a ausência de assunto que só um casal recém divorciado consegue cultivar.

Foi o Fê que mudou de ideia primeiro e tomou a iniciativa. Assim que os dois entraram no elevador vazio, ele sentiu o perfume floral que despertava as melhores lembranças de sua vida adulta, deu-se conta de que tinha que corrigir a burrada que havia acabado de fazer e puxou assunto.

- Eu... Acho que levei um livro seu na mudança, sem querer. Aquele do cachorro, sabe? Você já leu, mas eu sei que foi um presente e achei que você provavelmente iria querer de volta. A gente podia marcar de se encontrar pra eu te devolver.

- Ah, que bom que está com você! – a Alê mentiu, fingindo estar aliviada com a notícia. A verdade é que não tinha dado falta de livro nenhum, mas seu coração saltou do peito quando ouviu a sugestão de um encontro com o Fê. Há quanto tempo ela não experimentava aquela sensação? – Eu estava com medo de ter perdido. Tem uma blusa sua lá em casa também. Aquela azul que você gosta, lembra? A empregada tinha misturado com as minhas coisas e eu achei um dia desses. Eu levo pra você quando a gente se encontrar. Pode ser?

- Claro, pode ser sim. Eu estava mesmo sentindo falta dela. – o Fê respondeu, embora não desse a mínima para aquela blusa apertada. O importante era garantir que aquele encontro acontecesse, mesmo que não existisse nenhum livro a ser devolvido. Sentiu-se ansioso e inseguro de fazer o convite que faria a seguir, exatamente como havia se sentido no primeiro convite feito a ela, tantos anos atrás. – O que você acha de me entregar a blusa mais tarde? A gente podia aproveitar pra jantar. No Japa da Orla, talvez? Se você não tiver nenhum compromisso, claro.

- Compromisso? – Alê fingiu uma breve consulta mental à sua agenda. O único compromisso previsto era a aula de spinning, mas pedalar até as forças lhe abandonarem pareceu um martírio desnecessário naquele momento. – Não, acho que estou com a agenda livre. Pode ser no Japa da Orla, então. Oito e meia?

-Oito e meia. – o Fê concordou, sentindo os músculos do corpo relaxarem.  – Posso te mandar uma mensagem mais tarde, pra te lembrar?

- Claro. – a Alê confirmou, abrindo um sorriso amável. Sabia que não havia a menor chance de esquecer o compromisso, mas a ideia de voltar a trocar mensagens com ele despertou aquele friozinho na barriga há muito esquecido. – A gente vai se falando, então.

- Então tá. Até mais tarde.

- Até.

Quando o elevador chegou ao térreo, eles se despediram com dois atrapalhados beijos no rosto e seguiram em direções opostas. A Alê pegou o celular e ligou pra depiladora implorando por um horário durante a hora do almoço, enquanto o Fê mandou um whatsapp pro grupo do futevôlei avisando que eles teriam que arranjar outro lugar para assistir o Fla x Flu daquela noite.