domingo, 29 de março de 2015

Divórcio Coletivo



Todos ficaram arrasados quando souberam da separação da Alê e do Fê. Era unânime a opinião de que eles eram um casal bonito de ver, mas a maioria também concordava que o romance já não andava muito bem das pernas.

Foi a Alê que tomou a iniciativa de dar fim à relação, depois de muitas consultas às amigas. O diagnóstico de todas era irrefutável: o amor parecia ter chegado ao fim e um par de chifres inevitavelmente viria a seguir. Até a manicure participou do veredito, pontuando o debate com dois ou três casos de clientes que já tinham passado por aquele drama e sobrevivido para contar história.

O Fê foi pego de surpresa pela conversa definitiva, cinco minutos antes do Flamengo entrar em campo para o primeiro clássico realmente interessante daquele Campeonato Carioca. Escutou o desabafo da amada com paciência, tentou argumentar duas ou três vezes e chegou até a pedir por uma nova chance, mas as insistentes toalhas molhadas deixadas em cima da cama, o futebol com a turma do escritório às sextas-feiras e aquela viagem a Paris que nunca saiu do papel pesaram contra ele. O Fê perdeu mais que o Clássico dos Milhões naquela noite de quarta-feira.

Como a Alê não mudou de ideia na manhã seguinte, o Fê foi passar uns dias na casa do Paulo, esperando pelo fim do que deveria ser uma crise de TPM das fortes. Os companheiros do futebol recomendaram que sumisse do mapa por um tempo, pra que a mulher sentisse falta, percebesse que havia exagerado e ligasse pedindo pelo seu retorno. O Fê achou uma boa ideia e seguiu o conselho.

A Alê sofreu com o sumiço do Fê e, pelos dias e noites que vieram a seguir, foi prontamente confortada pelo esquadrão de amigas que não se cansava de dizer que ela deveria ser forte, que o melhor a fazer era não procurá-lo e que o desaparecimento do rapaz denunciava que ele já estava alguns passos à frente no processo de superar o rompimento.

Passada uma semana sem que o Fê desse sinal de vida, a Alê decidiu que era hora de seguir em frente. Depois de um domingo de chuva, muito choro, comédia romântica e uma panela de brigadeiro, acordou na segunda-feira decidida a dar a volta por cima: matriculou-se no Yoga para encontrar paz de espírito, na academia para recuperar a boa forma e permitiu-se algumas horas no shopping para elevar a auto estima. Estava encerrado o ciclo Alê e Fê.

O Fê ficou uma arara quando uma amiga em comum anunciou ter encontrado a Alê na aula de spinning. Recebeu a notícia de que ela estava com uma “cara ótima” e um “astral super pra cima” com uma pontada de raiva, mas decidiu que havia chegado a hora de ouvir os conselhos do amigo de infância e tocar o barco. Entrou pro time de futevôlei, alterou o status do Facebook e surpreendeu-se com a quantidade de convites “para um choppinho” que recebeu de amigos dos quais ele já nem se lembrava direito.

Quando descobriu que o Fê tinha trocado status do Facebook, o chão da Alê sumiu. Ele, que não acessava a rede social nem pra curtir as fotos onde era marcado, de repente estava anunciando pra todo o mundo (inclusive o virtual) que estava solteiro? Não era cedo demais para aquele grito de liberdade? A novidade se espalhou rapidamente e as amigas mais próximas não paravam de enviar mensagens com atualizações em tempo real sobre a repercussão da notícia. Qualquer um que curtia a mudança de status do Fê ou cometia o atrevimento de comentar a atualização tinha seu perfil minuciosamente analisado. Ao final do dia, a Alê tinha uma lista de nomes de mulheres que poderiam representar uma ameaça, embora ela não soubesse exatamente o que fazer com o dossiê digital. Sem uma ideia melhor, afogou as mágoas em um pacote de biscoito Maizena com Nutella, chorou mais um pouco e terminou a noite deletando fotos do casal de todas as redes sociais. 

A fofoca alcançou o círculo familiar e as ligações não tardaram a começar. A Alê explicou pra mãe que o Fê já não vinha sendo o mesmo há algum tempo e que só não terminou porque lhe faltava coragem. O Fê esclareceu pra irmã que a iniciativa tinha partido da Alê e que ele não pôde fazer mais nada quando recebeu a notícia. Os dois ouviam atentamente os conselhos de entes queridos, amigos de infância e colegas mais chegados: essas coisas eram assim mesmo, a vida tinha que seguir em frente e logo, logo eles encontrariam outra pessoa para fazê-los sorrir outra vez. 

O Fê decidiu que já era hora de sair da casa do amigo e procurar um canto só pra ele. Encontrou um apê mobiliado e alugou para uma temporada. Agora que tinha mais espaço, decidiu que era o momento de voltar à sua casa para buscar as roupas e outros objetos que estavam fazendo falta. Mandou um whatsapp para a Alê, que recebeu a mensagem, leu, mas só respondeu no dia seguinte: a chave estaria na portaria. Ele deveria pegar o que precisasse e sair antes que ela estivesse de volta.

A Alê não acreditou na cara de pau do Fê quando ele mandou uma mensagem pedindo para ir buscar “suas coisas”. Repassou a mensagem para o grupo de amigas do whatsapp, acompanhou o longo debate que seguiu-se ao envio do print de tela e acatou com determinação as instruções passadas pelas confidentes. Só respondeu no dia seguinte, para mostrar que estava ocupada demais para dar atenção a assuntos sem importância.

Quando chegou em casa, o Fê encontrou o apartamento bem mudado. Não havia mais fotos dos dois em nenhum lugar visível, alguns móveis tinham sido trocados de lugar e uma garrafa de um vinho caro ocupava uma das prateleiras da geladeira. Depois de colocar na mala as roupas que faltavam, o Fê lembrou-se do grill que a Alê nunca usava e achou que seria uma boa ideia ter alguma coisa pra esquentar os sanduíches no novo apartamento. Deixou um bilhete para avisar, embora tivesse certeza de que ela nem daria falta.

A Alê ficou louca de raiva quando chegou em casa e leu o bilhete deixado pelo Fê. Não podia acreditar que ele já havia começado a dividir os bens que os dois adquiriram juntos, antes mesmo que eles conversassem sobre o assunto! Ligou para a irmã mais velha, que havia passado por todo aquele aborrecimento há dois anos atrás e sentiu-se reconfortada ao perceber a indignação não era coisa da sua cabeça. E mais: foi fortemente recomendada a procurar um advogado tão logo o dia nascesse, para formalizar a separação e a partilha dos bens. Se o Fê já havia levado o grill, não demoraria a voltar pedindo as chaves do apartamento.

O palavrão que o Fê soltou quando recebeu o e-mail de uma desconhecida que se dizia advogada da Fê ecoou por todo o andar do escritório. O texto de palavras difíceis e expressões rebuscadas sugeria um acordo para divórcio amigável e uma planilha anexada relacionando todos os (poucos) bens do casal arrematava o desaforo. Os colegas do departamento jurídico foram escalados para ajudá-lo a traduzir o palavreado complicado e, em menos de quinze minutos, ele já tinha o suporte emocional e profissional de dois advogados. A indignação por conta da ambição desmedida da ex-mulher contagiou a ala masculina da empresa e o Fê achou por bem seguir o conselho de gente que já tinha passado por aquele tormento: a coisa mais certa a fazer era ir logo ao cartório e assinar uma procuração para ser representado por um advogado. Tudo preto no branco, conduzido por gente que entendia do assunto.

Quando a advogada da Alê ligou falando sobre a resposta desagradável que recebeu do advogado do Fê, o tempo fechou. Além da sugestão de partilha ter sido recusada, o advogado havia solicitado que fossem retirados da planilha de bens a bicicleta, a televisão do quarto de hóspedes e o PS3. A Alê se revoltou com a mesquinharia e deu carta branca pra advogada forçar a barra e ameaçar um processo judicial. Nada sairia da lista, nem mesmo o PS3 que ela sequer sabia como funcionava.

Depois de semanas de trocas de e-mails, notificações extrajudiciais, autenticações e reconhecimentos de firma, chegou o dia marcado para a assinatura do acordo para o divórcio. Com os valores de mercado devidamente atualizados, tudo o que estava dentro do apartamento do casal seria dividido por dois. Exceto o PS3 do Fê e o notebook da Alê.

O Fê foi o primeiro a chegar e a Alê só apareceu no minuto em que o nome do casal foi chamado. Entraram em uma pequena sala do cartório, sentaram-se em lados opostos da mesa retangular e, pela primeira vez em dois meses, se olharam. Foi uma troca de olhares longa, daquelas que só os dois conseguiam sustentar. E, de repente, o mundo ao redor deles pareceu silenciar.

O Fê achou que a Alê estava ainda mais bonita que da última vez que a viu. Ela havia perdido alguns dos quilos contra os quais praguejava todas as manhãs, tinha cortado o cabelo e pintado de uma cor que destacava ainda mais os olhos claros pelos quais ele se apaixonou desde a primeira vez em que a viu, no churrasco do Pedrinho. Por que os dois estavam em lados opostos daquela mesa mesmo?

A Alê achou que o Fê estava um espetáculo naquela camisa rose. A cor destacava sua pele morena e ele parecia ainda mais bronzeado naquela manhã. Seria a luz da sala? Também havia deixado a barba crescer de novo, do mesmo jeito que usava da primeira vez em que ela o viu, lindo e sorridente, no churrasco organizado pelo antigo namorado da Carol. O que havia acontecido para que os dois chegassem àquele ponto?

O momento de contemplação foi encurtado pelo representante do cartório. Todos pareciam apressados para encerrar aquela formalização e não houve sequer a sugestão para uma tentativa de reconciliação. Com honorários já combinados, papelada impressa e canetas a postos, o acordo foi assinado e a separação oficialmente selada. Os advogados trocaram apertos de mãos educados, o representante do cartório indicou o caminho da saída e, antes que a Alê e o Fê pudessem se dar conta, estavam sozinhos no hall de elevadores do edifício comercial. Restou aos dois o silêncio constrangedor e a ausência de assunto que só um casal recém divorciado consegue cultivar.

Foi o Fê que mudou de ideia primeiro e tomou a iniciativa. Assim que os dois entraram no elevador vazio, ele sentiu o perfume floral que despertava as melhores lembranças de sua vida adulta, deu-se conta de que tinha que corrigir a burrada que havia acabado de fazer e puxou assunto.

- Eu... Acho que levei um livro seu na mudança, sem querer. Aquele do cachorro, sabe? Você já leu, mas eu sei que foi um presente e achei que você provavelmente iria querer de volta. A gente podia marcar de se encontrar pra eu te devolver.

- Ah, que bom que está com você! – a Alê mentiu, fingindo estar aliviada com a notícia. A verdade é que não tinha dado falta de livro nenhum, mas seu coração saltou do peito quando ouviu a sugestão de um encontro com o Fê. Há quanto tempo ela não experimentava aquela sensação? – Eu estava com medo de ter perdido. Tem uma blusa sua lá em casa também. Aquela azul que você gosta, lembra? A empregada tinha misturado com as minhas coisas e eu achei um dia desses. Eu levo pra você quando a gente se encontrar. Pode ser?

- Claro, pode ser sim. Eu estava mesmo sentindo falta dela. – o Fê respondeu, embora não desse a mínima para aquela blusa apertada. O importante era garantir que aquele encontro acontecesse, mesmo que não existisse nenhum livro a ser devolvido. Sentiu-se ansioso e inseguro de fazer o convite que faria a seguir, exatamente como havia se sentido no primeiro convite feito a ela, tantos anos atrás. – O que você acha de me entregar a blusa mais tarde? A gente podia aproveitar pra jantar. No Japa da Orla, talvez? Se você não tiver nenhum compromisso, claro.

- Compromisso? – Alê fingiu uma breve consulta mental à sua agenda. O único compromisso previsto era a aula de spinning, mas pedalar até as forças lhe abandonarem pareceu um martírio desnecessário naquele momento. – Não, acho que estou com a agenda livre. Pode ser no Japa da Orla, então. Oito e meia?

-Oito e meia. – o Fê concordou, sentindo os músculos do corpo relaxarem.  – Posso te mandar uma mensagem mais tarde, pra te lembrar?

- Claro. – a Alê confirmou, abrindo um sorriso amável. Sabia que não havia a menor chance de esquecer o compromisso, mas a ideia de voltar a trocar mensagens com ele despertou aquele friozinho na barriga há muito esquecido. – A gente vai se falando, então.

- Então tá. Até mais tarde.

- Até.

Quando o elevador chegou ao térreo, eles se despediram com dois atrapalhados beijos no rosto e seguiram em direções opostas. A Alê pegou o celular e ligou pra depiladora implorando por um horário durante a hora do almoço, enquanto o Fê mandou um whatsapp pro grupo do futevôlei avisando que eles teriam que arranjar outro lugar para assistir o Fla x Flu daquela noite.