segunda-feira, 15 de junho de 2015

Fuga para a Polinésia




Ela mal pôde acreditar na própria ousadia quando recebeu o amontoado de papéis das mãos do atendente. Agradeceu os votos de uma boa viagem e conferiu mais uma vez o seu destino: Polinésia. A quantidade de cartões de embarque denunciava que seria uma viagem longa e cheia de escalas, mas quem se importava? Ela não tinha a menor ideia de onde ficava a Polinésia e achou razoável que fosse um lugar tão distante a ponto de merecer sua ignorância. 

Apanhou a pequena maleta de mão e caminhou resoluta na direção do portão de embarque. Dentro da bagagem não havia nada mais além de documentos pessoais essenciais, três mudas de roupas e aquele livro que havia recebido de presente no último aniversário e deixado sobre a mesa de cabeceira como um lembrete de que precisava tirar um tempo para si. A parafernalha eletrônica que havia comandado sua vida nos últimos anos tinha ficado para trás, juntamente com as chaves do carro e do apartamento. Sentia-se incrivelmente leve sem o peso de todas aquelas coisas.

Esperou sem pressa pela sua vez de passar pelo Raio-X. Pela primeira vez em sua vida não precisou esvaziar os bolsos ou tirar os saltos caros para escapar do apito infernal do equipamento. Cruzou o pequeno portal metálico com um sorriso no rosto, recolheu sua maleta do outro lado e caminhou com passos tranquilos até o guichê da imigração.

Entregou o passaporte e contou uma pequena mentira quando foi questionada sobre o seu destino e quanto tempo permaneceria por lá. Fingiu saber exatamente onde ficava a Polinésia, inventou uma viagem de férias e foi liberada sem outras perguntas. Sorriu ao imaginar qual seria a reação do agente se ela tivesse lhe contado que havia acabado de escolher o destino ao acaso, depois de constatar que aquele seria o primeiro voo a decolar onde ela poderia embarcar. Guardou o passaporte e o amontado de bilhetes de embarque no bolso  do casaco e só então lembrou-se de que não havia comido nada desde o início da manhã. Seu estômago roncou com um protesto e ela sentiu-se grata por descobrir que ainda tinha alguns minutos para uma boa refeição antes de embarcar.

Sentou-se no pequeno restaurante da sala de embarque e escolheu no cardápio tudo aquilo que havia abolido de sua alimentação por incontáveis anos: uma generosa taça de vinho, um prato de massa feito com a farinha mais branca e uma sobremesa que incluía alarmantes porções de chocolate e açúcar. O cérebro condicionado aos padrões de beleza arriscou-se a calcular a quantidade de calorias da refeição, mas os pensamentos foram rapidamente afastados junto com todas as restrições que lhe haviam sido impostas por tanto tempo. 

Comeu sem pressa e percebeu que havia esquecido como era o prazer de uma refeição sem as distrações trazidas pelos smartphones cada vez mais modernos: não houve nenhum e-mail, mensagem ou ligação urgente durante aquele jantar. 

Quando finalmente chegou ao portão de embarque, já havia a fila característica das pessoas que pareciam ter pressa para tudo. Ela sabia que seu cartão de fidelidade da mais alta patente lhe garantia prioridade sobre todas as pobres almas que se amontoavam diante do portão, mas decidiu sentar-se e esperar com paciência pelo fim do tumulto. Embarcou somente na última chamada e sentiu-se uma tola por nunca ter feito aquilo antes.

Ocupou seu lugar na primeira classe, sabendo que aquele assento de couro havia custado alguns meses de trabalho da maioria da população, mas então lembrou-se de todo aquele dia infernal e o remorso desapareceu imediatamente. Aquela seria sua viagem da libertação, afinal de contas. Tudo deveria ser feito em grande estilo.


Recebeu os mimos oferecidos pelos comissário de bordo para todos os que ocupavam aquele lado da cortina, acomodou-se em sua poltrona super confortável e finalmente sentiu o corpo relaxar. O vinho e o chocolate haviam feito seu trabalho e ela mal pôde acreditar na sensação de tranquilidade que experimentou naquele momento. 

Qualquer um que passasse pelo corredor e visse aquela mulher de meia idade com um semblante tão leve, não seria capaz de acreditar que poucas horas antes ela havia sofrido o golpe mais duro de sua vida: a alta executiva da multinacional do ramo de alimentos mais famosa do país havia perdido seu posto para um executivo mais jovem e ambicioso, que não parecia se importar com todos os anos que ela havia desperdiçado para chegar até ali. Seu rosto estaria estampado nas manchetes dos jornais no dia seguinte e toda sorte de comentários seria tecido a respeito da mudança.

Como não havia um marido companheiro ou uma família amorosa para colocar o chão de volta embaixo de seus pés, ela fez exatamente o que desejou fazer em tantas outras manhãs difíceis: reuniu o essencial para uma rápida partida, trancou a suntuosa cobertura no bairro de classe alta e deixou com o porteiro uma carta escrita às pressas e lacrada dentro de um envelope elegante, destinada a qualquer um que se desse ao trabalho de ir até lá procurá-la. Tomou o primeiro táxi rumo ao aeroporto e deteve-se diante do painel que apresentava as próximas partidas previstas, apenas por tempo o suficiente para escolher seu destino.

- Polinésia. – murmurou, quando esvaziou os pensamentos de toda a loucura daquele dia e acomodou a cabeça no encosto da poltrona. Sorriu ao perceber que estava prestes a realizar o velho desejo de desaparecer do mapa e deixou-se embalar pelo sono que aproximou-se lenta e suavemente, antes mesmo que ela pudesse se lembrar de que não havia tomado nenhum dos seus calmantes. 

O sorriso ainda estava em seu rosto quando um comissário de bordo constatou sua morte, dez horas mais tarde, depois de infrutíferas tentativas de acordar a passageira que deveria desembarcar para sua próxima escala. Seu semblante descansado não se alterou com o reboliço causado por um cadáver a bordo, nem com a constatação tardia de que uma doença traiçoeira e silenciosa tomara o controle antes que ela pudesse descobrir onde ficava a Polinésia.