quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Reciprocidade



Ela percebeu o que sentia quando já era tarde demais. Os sintomas não lhe eram exatamente inéditos: os pensamentos vagavam para longe sem sua autorização, as desculpas para tê-lo por perto surgiam com uma fluidez natural e o tempo voava quando eles estavam juntos. Havia risadas, assuntos intermináveis e confortáveis momentos de silêncio.

Havia também a certeza de que aquilo tudo era coisa da sua cabeça e de que aquele sentimento estava seguindo por uma via de mão única. Era óbvio que ele não estava interessado e que ela precisava fazer alguma coisa para sair daquela situação antes que se visse amarrada a algum tipo clichê de amor platônico.

Decidiu que distrair a mente seria a solução dos seus problemas: desviou a atenção dedicada a ele para as dúzias de livros e filmes recomendados pelos amigos ao longo dos últimos meses. A lista era grande e repleta de ótimas sugestões, mas sua estratégia mostrou-se infrutífera quando ela percebeu que vinha compartilhando os títulos favoritos com ele e criando ainda mais desculpas para procura-lo.

Mudou o foco para o esforço físico: sobrecarregou o corpo com uma bateria de exercícios, numa tentativa de fazer o cansaço levar a melhor sobre os pensamentos que teimavam em fugir para perto dele enquanto ela estava acordada. Matriculou-se nas aulas de spinning, alongamento, muai thay e ainda entrou na equipe de corrida do condomínio. Terminava o dia tão exausta que só sobrava tempo para um banho e uma refeição modesta, mas logo percebeu que o novo plano também não estava surtindo o efeito esperado: as horas de sono eram povoadas por sonhos estranhos e sem cabimento, que ela dividia com ele só para engrossar o coro das risadas que sempre pontuava as longas conversas entre eles.

Recorreu, então, a uma medida mais drástica: tomada por um rompante de coragem, embarcou sozinha em uma viagem para o lugar mais longe que conseguiu pagar. Concluiu que novas experiências ocupariam todo o espaço vazio da sua cabeça e trariam de volta sua paz de espírito. Não contava, porém, que encontraria pensamentos sobre ele em cada esquina da nova cidade. Antes do final do terceiro dia já estava compartilhando todas novidades e uma razoável quantidade de fotos de todos os lugares que tinha certeza de que ele adoraria conhecer.

De volta à rotina, reuniu as amigas mais próximas em uma mesa de bar e abriu o coração em busca de ajuda. Os diagnósticos para sua crise foram os mais variados e as soluções para os problemas igualmente descabidas: algumas sugeriram um novo romance para curar o amor impossível, outras sugeriram uma noite de prazer sem compromisso e houve até a sugestão de uma visita a um infalível guru do amor. Voltou para casa muitas horas e drinks depois, mais confusa e alcoolizada do que havia saído.

Foi só quando conectou o celular descarregado à tomada que finalmente fez-se a luz. A solução pareceu-lhe tão absurdamente óbvia naquele momento que ela não soube dizer porque não havia pensado naquilo antes. Encorajada pelo excesso de álcool em seu sangue e auxiliada pelo corretor ortográfico, ela colocou em ação sua brilhante idéia: pegou o celular e escreveu para ele as palavras que tanto atormentavam sua mente e agitavam seu coração. Aguardou com a respiração presa enquanto a mensagem era entregue ao destinatário, muito mais rápido do que ela esperava, e mal pôde acreditar quando a tela do smartphone se acendeu e revelou um simples "eu também". Sorriu, abraçou-se ao celular, largou-se na cama e adormeceu antes mesmo de calcular quanto tempo da sua vida havia desperdiçado para chegar até ali.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Em Pares


Sabrina se considerava uma mulher perfeitamente normal: sua aparência era bastante comum, seu QI confortavelmente dentro da média e suas habilidades pouco dignas de destaque. Havia algo, no entanto, que a colocava em uma categoria especial, embora ela não gostasse de pensar muito sobre o assunto: os grandes acontecimentos de sua vida vinham sempre em pares.

Sabrina foi planejada e passou a ser amada desde o momento em que os dois tracinhos do exame de farmácia apontaram sua existência. O dia de seu nascimento foi aguardado com ansiedade pelos seus pais, mas nenhum deles podia esperar que sua chegada seria acompanhada de um furacão de escala alarmante, que levou pelos ares sua casa e todo o enxoval preparado com carinho e cuidado ao longo dos nove meses de gestação. 

Aos quatro anos Sabrina e sua mãe encontraram um filhote de gato abandonado enquanto voltavam da escola e decidiram que ele precisava de um lar, cuidados e amor. Acharam que ele se daria muito bem com o filhote de cachorro que adorava correr pelo espaçoso quintal na nova casa, mas nunca tiveram a chance de apresentar os dois mascotes: encontraram o pobre cãozinho afogado na piscina e ninguém soube explicar como ele havia passado pelo cercado que deveria mantê-lo fora de perigo. 

Aos oito anos Sabrina realizou o sonho de ver o rosto do seu irmãozinho. Pedia por ele em todas as orações sonolentas que fazia antes de ir pra cama e chegou, até mesmo, a arriscar um acordo com a Fada do Dente. Sentiu-se agradecida por vê-lo ali, tão pequeno e indefeso na incubadora da maternidade, mas estava triste demais para dizer o quanto ele era bem vindo: ainda teria que lidar com a ausência irreversível e devastadora de sua mãe, que não resistiu a complicações no parto e se foi antes que pudesse ver o belo presente que havia deixado para sua preciosa filha.

Aos doze anos Sabrina ganhou seu primeiro sutiã. Era lindo e delicado como os das propagandas de revista e ela sentiu-se uma mulher incrivelmente adulta quando meteu-se dentro dele e atravessou a rua para exibir o troféu à sua melhor amiga. Mas não houve gritinhos ou risadas naquela manhã: a  fiel companheira de passeios de bicicleta, festas do pijama e segredos compartilhados na casa da árvore havia sido levada às pressas em uma mudança na calada da noite, depois que uma briga doméstica chegou às raias da violência e aquele lar deixou de ser um lugar seguro para uma criança.

Aos dezessete anos Sabrina foi aceita como bolsista na faculdade mais conceituada do estado. Havia sido uma disputa acirrada e a carta tão esperada foi recebida com tamanha comemoração, que quase não foi possível ouvir chegada do oficial de justiça e da ação de despejo que ele trazia dentro de sua maleta de couro. 

Aos vinte e um anos Sabrina encontrou o amor verdadeiro. Era suave, despretensioso e inevitável como todos disseram que seria. Ela foi correspondida na mesma proporção e quando ouviu o primeiro "eu te amo", sussurrado ao seu ouvido embaixo de um céu pontilhado de estrelas, fechou os olhos, suspirou resignada e esperou. Afinal, todos os grandes acontecimentos de sua vida vinham aos pares.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Crise do Cupido



O encontro entre Mariana e Pedro estava escrito nas estrelas, mesmo assim o amor não desabrochou: Mariana sorria quando pensava no rapaz, mas todas as vezes em que surgia uma oportunidade de falar sobre seus sentimentos, a tela do smartphone de Pedro se acendia e ela se convencia de que não teria nenhuma chance contra a dona das mensagens enviadas a ele. Pedro tinha pouco controle sobre a vontade de estar perto de Mariana. Sempre encontrava desculpas criativas para conseguir algumas horas de conversa e novas chances de encontrar aqueles encantadores olhos cor de mel, mas Mariana não correspondia seus sentimentos; uma hora ela parecia prestes a dizer o que ele tanto esperava ouvir e no minuto seguinte recuava como se simplesmente tivesse mudado de ideia. Apesar de suas várias tentativas, os encontros terminavam apenas com um beijo no rosto, um abraço e um “boa noite” sussurrado ao pé do ouvido. Com o tempo Mariana passou a declinar dos convites de Pedro e ele decidiu que talvez devesse se render à insistência daquelas mensagens que inundavam seu telefone muito mais vezes por dia do que ele gostaria de receber. 

João e Luísa tinham se apaixonado à primeira vista, mas a coisa toda nunca passou de alguns beijos quentes, uma noite entre lençóis e promessas de um segundo encontro. Eles descobriram muitas coisas em comum enquanto bebiam cerveja barata e desfrutavam da reserva de seis horas do motel no centro da cidade: amavam a natureza, odiavam os empregos, sonhavam com uma viagem ao redor do mundo e com um labrador no quintal de casa. Trocaram contatos, mas Pedro nunca chegou a enviar o convite de amizade para o Facebook de Luísa: ele achou que viu festas, bebidas e homens demais nas fotos compartilhadas por ela na rede social e decidiu que não queria ser apenas mais um nome em uma extensa lista de contatos. Luísa esperou por um telefonema, uma mensagem ou um convite em suas redes sociais, mas não ficou realmente surpresa quando nada aconteceu; as amigas não se cansavam de lembrar que ela nunca deveria se apegar a casos de uma noite. Poucos dias depois já não houve mais espera, nem recordações sobre a viagem de mochilão que havia sido combinada entre beijos quentes e suspiros de prazer.

Claudia amava Carlos e tinha certeza de que eles seriam felizes para sempre, até o dia em que ela abriu sua conta no Instagram. Descobriu que Carlos tinha uma quantidade desnecessária de mulheres como seguidoras e que uma delas curtia apenas as fotos em que ele aparecia sozinho. Carlos dizia que ela estava fazendo tempestade em um copo d´água, mas Claudia começou a desconfiar que talvez estivesse confiando demais nele. Houve discussões e mais suspeitas, até que um bate boca virtual com a seguidora assanhada levou ao chão os alicerces fragilizados do relacionamento. Carlos terminou o namoro afirmando que precisava de uma mulher mais equilibrada e Claudia concluiu que o ex-namorado era o maior cafajeste que já havia caminhado sobre a face da terra.

As histórias de amor fracassadas se multiplicavam a uma velocidade alarmante e pesavam sobre os ombros dos pobres anjos Cupido como um fardo desconfortável. Havia aqueles que achavam que a mira deles já não andava tão boa e outros que tinham certeza de que o problema estava nas flechas. Havia, ainda, os que achavam que o contingente dos Cupidos tinha sido reduzido, talvez mobilizado para atender outros tipos de problemas celestiais de nível mais elevado. Mas a verdade era que estavam todos enganados: os Cupidos vinham trabalhando mais do que nunca, sua mira permanecia impecável e as flechas eram tão boas como antigamente. 

A crise dos Cupidos já havia sido reportada para os anjos Serafim, que prometeram subir o problema para o último nível. A sabedoria dos anjos Querubim também havia sido requisitada para ajudar a lidar com aquela turbulência, mas a busca de uma solução vinha se mostrando uma tarefa muito complexa e não havia previsão para melhora no cenário a curto prazo. Enquanto as respostas não vinham, os Cupidos continuavam vagando sem descanso pelo mundo, atirando suas flechas e torcendo para que elas passassem através dos retângulos metálicos que os seres humanos mantinham erguidos quase vinte e quatro horas por dia na altura de seus corações.