sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Crônica sobre uma Garrafa de Vinho



Essa foi uma semana com a cara de 2016: infernal. Muito trabalho, pouco dinheiro, mais fome do que o razoável, notícias (muito) tristes, notícias (muito) revoltantes e o desejo ardente de que os cinco dias acabassem logo. Finalmente, depois de uma longa espera, eis que #sextou.

#Sextou, mas o cansaço está maior que o saldo da conta  bancária e a disposição pra encarar a noite carioca está mais baixa que a tarifa dinâmica do Uber. A solução é encontrar conforto na Netflix e, por que não, em uma garrafa de vinho?

Corta para a fila do supermercado. Vinho escolhido, cometi a ousadia de complementar com um queijo afrescalhado (só porque hoje é #diadamaldade) e segui com fé para a fila do caixa. Eis que teve início a aventura mais fascinante da semana: nos minutos seguintes, descobri que uma garrafa de vinho e um pedaço de queijo brie definem, sim, meu estado civil.

“Esse vinho é bom?” – a companheira de fila puxou assunto, depois que eu cometi o deslize de abrir um sorriso solidário às reclamações sobre a demora no atendimento.

Confirmei que era, ostentei meu (patético) conhecimento sobre vinhos e sorri (erro número dois).

“Ih, tem até um queijinho. Hoje tem, hein?”

Confesso que, naquele momento, eu fraquejei. Pensei em responder que hoje tinha, sim, e inventar uma versão bem romântica pra justificar as minhas compras, mas tenho uma envergadura moral para sustentar e optei pela verdade: o vinho e o queijo eram pra mim. T o d i n h o s  pra mim.

A companheira de fila piscou, visivelmente confusa. Eu quase consegui ver as sinapses mentais dela entrando em curto circuito. Continuei agindo naturalmente.

“Ah, que legal. (sorriso constrangido) Não tem nada melhor que um vinho pra relaxar, né?”.

Sorri pra ela de novo, do mesmo jeito que sorri para a mocinha do caixa quando ela me entregou a sacola com o vinho e me desejou um “boa noite” com a animação de quem tinha certeza de que eu teria uma madrugada de pura luxúria.

Já na segurança do lar, com o vinho gelado (me julguem) e o queijo devidamente cortado em tamanhos totalmente aleatórios, só faltava a Netflix para que a noite top-top-top ficasse completa. Mas, antes, aquela olhada rápida no celular pra conferir as fotos da sexta-feira da galera: gente malhando, gente bebendo, gente engarrafada e gente mandando aqueles selfies que não têm propósito algum. Mandei uma foto do melhor ângulo da minha taça (atire a primeira pedra aquele que nunca tirou foto do próprio copo de bebida) e me dediquei  à árdua tarefa escolher uma série. Tem coisa mais empolgante que uma maratona de séries em plena sexta-feira à noite? É claro que tem, eu sei.   

Com a velocidade que só as fofocas digitais conseguem atingir, meu celular foi bombardeado por uma sequência de mensagens com emojis festivos, emojis de coração, emojis de diabinhos e uma série de perguntas indignadas sobre onde eu estava, com quem estava tomando vinho em plena sexta à noite e por que a sociedade não estava ciente dessa novidade.

Frustrei todo o entusiasmo do momento com a notícia de que só haveria uma taça por essa noite e entendi porque não posso reclamar dessa vida: recebi mensagens preocupadas com a minha solidão, convites para me aventurar pela emocionante e caríssima noite do Rio de Janeiro e até uma companhia solidária para me ajudar a dar fim na garrafa de vinho e assistir a uma comédia romântica bem açucarada pra adoçar a alma. Recusei todas, feliz da vida por ser tão amada.

Não escolhi nenhuma série e desisti da Netflix antes de chegar à metade da garrafa. Não dava para deixar de escrever sobre a fascinante experiência de ser uma solteira de trinta (e poucos) anos e desejar uma garrafa de vinho em plena sexta-feira à noite. No dia oficial da maldade, não há nada mais subversivo do que esvaziar uma(s) taça(s) sozinha, na frente da tela do computador, escrevendo sobre as pequenas coisas da vida que nos divertem quando observadas pelo ângulo certo. Saúde!

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Encantado

Aquele havia sido um dia absolutamente comum, mesmo assim ele sentia a opressão crescer dentro do peito, como se alguma coisa estivesse sendo inflada lá dentro. Desligou o computador no primeiro minuto após o expediente, recusou o convite para um monótono happy hour com os colegas de trabalho e respirou o ar do fim da tarde com alívio, quando finalmente cruzou as portas do edifício comercial onde deixava valiosas horas de sua vida.

Escolheu um caminho diferente para a casa naquele dia. Na verdade, escolheu o caminho oposto. Tomou o primeiro ônibus que o afastaria do tumultuado centro comercial e abandonou o coletivo na primeira parada que lhe permitisse ver o mar. Era inverno, mas o glorioso dia que chegava ao fim fazia da estreita orla um bom lugar para se estar àquela hora. 

Caminhou sem pressa pela calçada de piso cinzento, desviando ocasionalmente de ciclistas ou cruzando olhares despreocupados com pedestres que observavam, com ar intrigado, suas roupas sociais. No horizonte, o sol baixava e manchava os céu com as cores suaves da estação. Percorreu toda a orla com uma caminhada tranquila e só parou quando chegou ao velho deck de madeira que se lançava em direção ao mar. Sentiu-se grato por não haver nenhum casal de namorados ou grupos de adolescentes dividindo cigarros baratos àquela hora. Deixou o ar escapar pelos pulmões, tirou os sapatos, dobrou a calça social, sentou-se na madeira molhada do deck e mergulhou as pernas na água do mar. A maré estava alta e a água gelada engoliu suas canelas quase por inteiro. Lançou um olhar cansado na direção do mar escuro à sua frente e quase se engasgou com o grito que fez força para segurar.

Uma cabeça boiava na água, poucos metros adiante. Ficou imóvel por tempo suficiente para gelar o estômago dele, então se mexeu e fez submergir um pescoço, ombros e um par de braços que se agitavam com movimentos suaves sobre a as marolas da maré tranquila.
 
Eu assustei você? Desculpe! - uma voz feminina perguntou, num tom aveludado que desacelerou imediatamente as batidas do coração dele. Contra a luz do fim do dia quase não dava para ver os detalhes da mulher que se movia com suavidade na água, mas ele teve certeza absoluta de que ela era deslumbrante.

- Não, você só me pegou desprevenido. - ele respondeu, tentando parecer mais relaxado do que realmente estava. - Não esperava ver ninguém nadando por aqui a essa hora. A água não está gelada demais?

Ela levou um tempo para responder, como se nunca tivesse reparado nisso antes.

- Acho que já estou acostumada.

- Você costuma nadar sempre por aqui? - ele perguntou, sentindo-se um perfeito idiota no momento em que proferiu a última palavra.

Só quando preciso espairecer um pouco. - ela retrucou, sem parecer ter reparado no clichê lançado pelo homem cansado sentado no deck. Ela podia perceber que ele estava muito cansado apenas pelo som da sua voz. Era bastante boa nisso. 

- Teve um dia difícil? - ele perguntou, sentindo uma empatia imediata pela nadadora desconhecida. 

Ela respondeu à pergunta com uma interjeição que sugeria que o dia havia sido realmente difícil e pôs-se a tagarelar com sua voz aveludada como se eles fossem velhos amigos. Enquanto nadava de um lado para o outro da água gelada, ela explicou que sentia-se particularmente infeliz naquele dia, pois havia concluído que jamais seria realmente aceita no lugar de onde vinha. 

- Por que você não sabe cantar? - ele repetiu, quando a nadadora explicou o motivo de sua rejeição. Sentiu vontade de rir, mas nada no tom de voz dela sugeriu que aquilo fosse uma piada.

- É algo muito valorizado no lugar de onde eu venho. - ela respondeu com firmeza. Ele pensou em perguntar de onde ela vinha, mas uma agitação repentina na água à sua frente dispersou seus pensamentos. Em um piscar de olhos, ela mergulhou na água escura e ressurgiu dali a poucos segundos, debruçando-se sobre o deck. Metade do corpo permaneceu na água, mas a metade que submergiu atraiu seu olhar de forma magnética, apesar de todos os esforços que ele fez para não parecer um boçal. Cabelos longos e escuros contornavam um rosto pálido e olhos brilhantes, que pareciam cintilar contra as sombras lançadas pelo sol poente. Os seios fartos, apertados entre os braços que se apoiavam no deck, avultavam-se de forma tentadora e ele desejou com um ardor quase infantil que um último raio de sol surgisse de lugar nenhum para lançar luz adequada àquele quadro. 

- E você? - ela assumiu a conversa, quando percebeu que ele parecia distraído demais para continuar o assunto. - Do que está tentando fugir?

- De tudo. - ele respondeu, antes que pudesse processar as próprias palavras. Aqueles olhos brilhantes continuavam a observá-lo com atenção e ele pôs-se a falar como nunca havia falado com ninguém. Contou que sentia-se exausto por ser apenas mais um na multidão e como a vida tranquila, o emprego estável, os amigos agradáveis, os relacionamentos mornos e a estabilidade financeira às vezes lhe pareciam um prêmio de consolação para aplacar a sensação de que a vida passava diante de seus olhos sem que ele realmente estivesse fazendo parte dela.

- Isso me parece tão triste quanto não se sentir parte de lugar algum. - ela respondeu, quando ele finalmente pareceu ter sido esvaziado de suas inquietações. Pelo tempo que veio a seguir eles debateram sobre como seria a vida de cada um se eles experimentassem a aflição do outro. Ela desejou ser mais uma na multidão ao invés de ser simplesmente conhecida como aquela que não consegue fazer o que todos os fazem. Ele especulou que talvez não fosse tão ruim se destacar na multidão, mesmo que fosse por não se encaixar em padrões sociais considerados aceitáveis. Discutiram, discordaram, riram e divagaram sobre as coisas mais improváveis e fascinantes, enquanto a lua cheia subia no céu e forrava o mar com seu tapete cintilante. Descobriram rapidamente que teriam assunto para a noite inteira, mas quando ela retornou de um dos seus breves mergulhos e apoiou-se novamente no deck, não trazia mais no rosto o semblante relaxado do início da conversa.

- Eu preciso ir embora. - ela anunciou. - Está ficando tarde.

As palavras o trouxeram de volta ao mundo real com um solavanco. Ele olhou a hora no relógio e espantou-se em ver como as horas tinham passado rápido.

- Uau, o tempo voou! Não sei como você conseguiu ficar até agora aí dentro sem congelar. Precisa de ajuda para sair? 

Ela meneou a cabeça com firmeza e ele pareceu genuinamente confuso. 

- Você precisa ir embora, não precisa? Ou pretende ir para casa nadando? - abriu um sorriso para ressaltar o gracejo contido na pergunta, mas fechou assim que ela acenou positivamente. - Você pretende?

- É o jeito mais fácil. - ela limitou-se a responder, dando de ombros com um movimento gracioso. - E acho que não sei chegar lá de outra forma.

- Onde você mora? - ela finalmente perguntou. Em resposta, observou-a voltar o corpo na direção do mar e apontar para o horizonte. Imaginou que ela estivesse se referindo à cidade do outro lado da baía. 

- Você tem certeza de que não quer tentar outro caminho? - ele perguntou, sentindo-se particularmente estranho por estar tendo aquele tipo de discussão. Quantos quilômetros de mar separavam as duas cidades? Uns trinta? Quarenta? - Podemos ir juntos, se você se sentir mais segura. E podemos ir conversando também, para ajudar o tempo a passar. 

- Esse é o caminho mais rápido. - ela insistiu, mas percebeu a expressão triste que tomou o rosto do homem cansado e completou. - Mas vocês pode vir comigo. Vou me sentir mais segura. E vai ser bom conversar mais. 

Ele piscou, claramente confuso com a oferta, mas já era tarde demais para o seu bom senso. A ideia de deixar aquela mulher partir, por mais estranha que fossem as circunstâncias, estava fora de cogitação. Ele tinha passado sua vida inteira fazendo apenas o que era razoável, aceitável e racional. E o que havia conseguido com tudo aquilo? 

- Então eu vou com você. - anunciou, determinado. Pela primeira vez, em muitos anos, sentiu a liberdade trazida por uma decisão baseada simplesmente na sua vontade. Seu lado racional dizia que ele não deveria entrar no mar gelado no meio da noite, sua razão dizia que não fazia nenhum sentido cogitar a ideia de cruzar aquela baía a nado e o aceitável clamava para que ele não se juntasse àquela desconhecida. Mas ele havia se tornado repentinamente surdo e sentia-se incrivelmente leve. 

- Mesmo? - ela perguntou, abrindo o sorriso mais encantador que ele veria em toda a sua vida. 

- Mesmo. - ele respondeu, livrando-se das roupas que atrapalhariam seus movimentos. - Mas precisamos ir devagar. E talvez eu tenha que parar para descansar um pouco às vezes. Você se importa?

- Claro que não! - ela respondeu, desnorteando definitivamente os sentidos dele com a sua felicidade. Ela não podia acreditar que finalmente havia encontrado alguém que não se importava com o seu canto.

Ele pulou na água como as crianças de nove anos costumam fazer. Espirrou água, reclamou da temperatura congelante e os dois riram daquele momento até ela anunciar que era hora de partir. Avançaram pelo horizonte escuro, ele batendo pés e braços com movimentos desajeitados, enquanto ela movia-se com movimentos graciosos, a cauda cintilando vez ou outra quando encontrava a superfície e a luz da lua.

Ele não apareceu no trabalho no dia seguinte. Também não foi para casa. E nem atendeu às suas ligações. Suas roupas e documentos foram encontrados, abandonados na beira da praia. A polícia foi envolvida, uma investigação foi aberta e uma onda de comoção se formou. Enquanto o procuravam, fotos suas circularam por redes sociais, acompanhadas de pedidos de informação sobre seu paradeiro. A imprensa da cidade se agitou com o misterioso desaparecimento. Houve declarações emocionadas de todo tipo de gente, que fazia questão de dizer, com vozes embargadas pela emoção, que ele era uma das pessoas mais especiais que elas já haviam conhecido. Todas afirmavam que ele era único e que o mundo seria um lugar mais triste depois daquele desaparecimento repentino.

Quando ela retornou de seu longo passeio, arrastando o corpo sem vida de um dos moradores do mundo lá de cima, se tornou a figura mais popular da colônia. Em pouco minutos a notícia se espalhou: a sereia que não sabia cantar tinha conseguido atrair um humano para os seus domínios. Ela recebeu aplausos, cumprimentos e congratulações, enquanto arrastava sua presa para longe dos olhares curiosos. Quando finalmente se viu sozinha, ela abraçou o corpo do homem cansado e chorou de tristeza e remorso. Ela havia prometido mostrar a ele sua casa e cada um dos detalhes que amava, então tomou-o pelas mãos e mergulhou rumo aos seus domínios sem olhar para trás.  Não soube dizer em que momento o havia perdido.

Ela chorou por todo aquele dia e por outros vários que vieram a seguir, enquanto as notícias sobre seu feito se espalhavam pelos sete mares. 

Ele foi encontrado numa praia distante, muitos dias depois de boiar sem rumo pelo oceano, enquanto uma cidade inteira se mobilizava na busca por seu estimado morador. 

15/09/2016

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Fênix




Quando ela finalmente chegou em casa, depois do dia que pareceu ser o mais longo da sua vida, achou que não passaria daquela noite. Cada célula do seu corpo parecia estar prestes a entrar em colapso e ela teve a perturbadora sensação de que os pilares imaginários que a mantiveram de pé até aquele momento começavam a sucumbir lentamente ao peso da sua exaustão.

Agradeceu pela casa vazia e silenciosa. Apesar de ser tema constante de brigas, a ausência do marido e filhos lhe pareceu uma benção naquele momento. Só por aquela noite não precisaria se preocupar com o jantar, com a tampa do vaso respingada, com as toalhas molhadas sobre a cama ou com a mancha naquela blusa novinha que havia custado tão caro.

Livrou-se dos saltos, caminhou sem pressa até o quarto, despiu-se da blusa social, do sutiã push up, da saia lápis de corte reto e da calcinha modeladora sem costura que ajudavam a criar a ilusão tão desejada pelos padrões de beleza que sussurravam ordens diariamente aos seus ouvidos.

Levou seu corpo nu até a frente da penteadeira atulhada de produtos de beleza e continuou sua desconstrução: retirou a camada carmim dos lábios, o saudável rosado artificial das bochechas, a base de alta cobertura e o rímel de efeito cílios postiços. Arrastou-se até o banheiro, ligou a ducha de alta pressão na água gelada e mergulhou embaixo dela com um movimento decidido.

Os cabelos perfeitamente modelados com laquê minguaram, deixando escorrer pelo ralo o creme leave in termo ativado e o fluido restaurador de pontas. O sabonete esfoliante lavou do corpo a loção tonificante e o eau de parfum com fixador de longa duração.

Quando saiu do chuveiro, ainda pingando de exaustão, ela encarou-se no espelho e enxergou o que vinha fazendo questão de não ver: o tempo havia levado embora a sua juventude e deixado no lugar um reflexo triste do que ela havia sido. As curvas da cintura já não eram luxuriantes como nos velhos tempo, a pele parecia menos firme e mais desbotada e os cabelos caíam sobre os ombros como um tapete surrado. O rosto que a observava também parecia corroído pelos anos: as marcas suaves nos cantos boca denunciavam um sem fim de sorrisos desperdiçados e as manchas abaixo dos olhos eram um lembrete constante das horas insones. Piscou duas vezes enquanto tentava encontrar, no fundo dos olhos escuros, aquele brilho que outrora desnorteou e encantou uma legião de admiradores. Não encontrou mais nada lá.

Sentiu um nó apertado formar-se bem no meio do peito e precisou respirar fundo para que não sufocasse com ele. Não adiantou. O aperto expandiu-se e começou uma subida lenta pela garganta, apesar de suas tentativas desesperadas para desfazê-lo. Piscou várias vezes quando os olhos se tornaram subitamente úmidos e embaçados. Tentou proibir a si mesma de evocar aqueles sentimentos tão cuidadosamente sedimentados, mas, naquela noite de silêncio e solidão, falhou. A primeira lágrima escorreu teimosa pelo seu rosto cansado e no segundo seguinte sentiu que as frágeis barreiras de uma represa mal construída se romperem em seu coração. Chorou pelas escolhas erradas, pelos sacrifícios sem reconhecimento, pela raiva suprimida, pelas angústias mal curadas, pelos anos mal vividos, pelas noites em claro, pela mesmice torturante e por cada pequena coisa que a havia conduzido até o fundo daquele precipício tão profundo e desolador.

Enquanto chorava, dobrando-se sobre os próprios soluços, não percebeu quando começou a entrar em combustão. Distraída demais com o pranto e com as dores da alma, não viu sua carne queimar e os ossos ruírem em um monte de cinzas e soluços. Pranteou sem parar, até que seu ser se resumiu a um monte de brasas vermelhas e só restou a certeza de que era hora de recomeçar. Ela descendia de uma linhagem de fênix gloriosas e não havia outro destino reservado para si, senão o de renascer das próprias cinzas.

sábado, 30 de abril de 2016

Crônica sobre uma frente fria



Antes de seguir adiante, deixa eu explicar uma coisa: eu não odeio o verão. Não mesmo, juro.  Mas adoro a maneira como frio nos torna mais humanos. Vale ressaltar que, quando eu me refiro a “frio”, estou falando dos vinte graus que colocam o Rio de Janeiro em contagem regressiva para o inverno. A tal sensação térmica negativa que os nossos compatriotas do sul estão experimentando é algo desconhecida para a turma aqui do sudeste. Nossa solidariedade a vocês aí embaixo!

Mas vamos voltar ao frio: que experiência maravilhosa foi dormir e acordar com uma frente fria estacionada sobre o estado! Não deu pra tirar minhas botas favoritas do guarda-roupas, mas fez frio  suficiente para desacelerar a cidade e esvaziar as redes sociais. Em plena sexta-feira à noite pude ir pra cama sem a sensação de estar desperdiçando minha juventude. O Facebook estava um sossego sem tantas fotos de gente bonita, bem vestida, aglomerada em poses perfeitas e segurando suas bebidas caras. Nenhuma postagem exibindo as tão conhecidas legendas “balada top” ou “até tem vida mais barata, mas não presta”. Encontrei um ou dois pezinhos calçados em pantufas engraçadinhas e meias confortáveis, mas a maioria de nós se contentou com uma coberta quentinha e a companhia de seus entes queridos, sejam eles humanos, bichos de estimação ou a Netflix. Todo mundo off line, curtindo a simplicidade mundana da realidade.

E o que dizer sobre acordar com um sábado sem sol? Além do alívio de poder dormir até tarde sem se preocupar com o custo adicional do ar condicionado, não ver os raios de sol refletidos na parede pra te lembrar de que o mundo lá fora já está em movimento enquanto você ainda descansa é um sossego para o espírito. Os grupos do whatsapp em silêncio também foram uma trégua para as almas ansiosas: com a chuvinha fina caindo do lado de fora, não teve aquela enxurrada de mensagens convocando para os tradicionais programas do sabadão ensolarado. Só os clássicos “bom dia” e as incansáveis correntes enviadas nos grupos da família, que nem parecem assim tão irritantes em um dia nublado e tranquilo.

A turma da malhação e dos corpos sarados também deu uma boa folga pra nós, meros mortais com metabolismos menos acelerados e abdomens mais volumosos. Com o mar se revirando em ressaca, ventos cortantes e a incansável garoa que fica indo e vindo, o Instagram esteve livre das fotos da turma que malha e precisa mostrar ao mundo toda sua capacidade de transformar calorias em força física. A geração saúde conectada, que em sábados normais já teria corrido 10k, pedalado entre cinco bairros, remado uma distância Rio x Niterói e postado fotos com frases motivacionais pra mostrar o resultado (enquanto eu ainda nem teria escovado os dentes), parece ter resolvido ficar até mais tarde na cama para aproveitar a serenidade trazida por uma manhã cinzenta.  

O frio é generoso com todos os estados civis. Com aquelas correntes frias entrando por cada fresta da casa, o edredom se torna um porto seguro tanto para os casais apaixonados quanto para as almas solitárias. O moletom se torna a vestimenta oficial e nos lembra que somos, sim, todos iguais. Não há distinção entre abdomens sarados ou barrigas protuberantes quando nos escondemos embaixo daquelas duas abençoadas peças de roupas.  

Em dias nublados como hoje, aproveitamos para organizar aquelas pequenas bagunças que as festinhas top, a praia com os amigos, a corrida, a pedalada ou os churrascos-ostentação sempre jogam para segundo plano. Sem o calor que pede a cerveja gelada, o banho de mar e a foto do par de pernas saradas postada nas redes sociais, a gente tem a oportunidade de relaxar de verdade e aproveitar cada minuto desses dias ociosos que vão se acabar tão logo a primeira massa de ar quente seja soprada em nossa direção.

Eu não odeio o verão, juro! Amo os dias longos, os pores do sol multicoloridos e a energia incrível que só o sol e o céu azul conseguem gerar. Mas como não amar também a simplicidade e a humanidade que o frio deixa transparecer em todos nós?

Viviane Ribeiro
30/04/2016

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Premonição


Ela não pôde deixar de sorrir quando aquela velha lembrança emergiu das profundezas da sua memória. Dirigia pela autoestrada a caminho de casa, com o sol se pondo à sua frente e todo o cansaço do dia pesando em suas costas. Quanto tempo tinha aquela recordação? Quinze anos? Vinte, talvez? 

Abaixou o quebra sol para proteger os olhos da luz forte do final do dia e encarou a estrada à sua frente com olhos monótonos. Seus pensamentos vagaram de volta àquela tarde de outono nublada, onde havia desperdiçado toda sua mesada em uma consulta tola a alguém que supostamente poderia prever o seu futuro. Ainda conseguia se recordar do cheiro forte de incenso, da textura da toalha de veludo gasto e das palavras roucas da mulher super maquiada que limitou-se a responder suas juvenis angústias afetivas com a afirmação de que ela encontraria o amor da sua vida antes de morrer.

Agora que aquela memória havia retornado à sua mente, não conseguia acreditar em como perdera tanto tempo tentando tornar aquela suposta premonição uma realidade. Desperdiçou longos anos de sua vida em relacionamentos problemáticos e rompimentos dramáticos, agarrando-se à esperança pueril de que cada novo beijo traria o amor verdadeiro que havia sido anunciado pelo tarô cigano. Colecionava alguns ex-namorados, dois noivados frustrados e um divórcio recém assinado como souvenirs de sua jornada.

Ainda conseguia sentir o pungente cheiro de incenso quando seus pensamentos e seu corpo foram atingidos com uma violência descomunal. O som ensurdecedor de ferro sendo amassado e vidro estilhaçado encheu todo o ar ao seu redor, enquanto ela era arremessada para diferentes lados durante um tempo que sua consciência oscilante não foi capaz de calcular.

Quando seus olhos voltaram a se abrir, tudo ao redor era caos. Ela estava deitada no asfalto, sentindo o calor de um incêndio e o cheiro de gasolina em combustão. Sentia uma dor intensa, profunda e devastadora em cada parte do seu corpo. Tentou levantar a cabeça para estimar o estrago que havia sido feito, mas foi impedida por um par de mãos que bloquearam seus movimentos com firmeza. Piscou duas vezes para se acostumar à luminosidade intensa e então identificou um rosto flutuando pouco acima de si.

- Vai ficar tudo bem. – o dono da cabeça anunciou, com uma voz grave e quase hipnótica. Por um breve momento não houve mais dor, nem confusão. – Eu estava logo atrás quando o outro carro veio na contra mão e acertou você. Já chamei ajuda, vai ficar tudo bem.

Ela esforçou-se para responder, mas sentiu a boca invadida por algo que tinha gosto de ferrugem. Limitou-se a piscar mais uma vez e acreditou. Acreditou em cada palavra que ele disse enquanto tentava mantê-la consciente. Acreditou que a ajuda estava quase chegando, que não seria nada grave e que depois que o susto passasse eles se encontrariam de novo e ririam daquele momento. Acreditou que tudo ficaria bem, apesar da dor lancinante em sua cabeça e da certeza absoluta de que havia algum osso bastante fora do lugar em seu corpo. Acreditou naqueles olhos escuros e expressivos, que a encaravam como se pudessem ler toda inquietude da sua alma. Acreditou no baralho cigano, na mulher super maquiada e finalmente compreendeu o significado das palavras dela.

Já conseguia ouvir o som distante de uma sirene quando sentiu o gosto de ferro se adensar em sua boca e os pulmões serem invadidos por um líquido sufocante. Lutou com todas as suas forças pelo ar e pela oportunidade de contemplar os olhos escuros do amor da sua vida por mais tempo, mas a escuridão e o silêncio chegaram aos poucos, juntamente com a certeza de que sua mesada não havia sido realmente desperdiçada naquela antiga tarde nublada de outono.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Entre Mundos



No dia da sua despedida, os que ficaram para trás disseram que ainda o veriam voltar. Seu coração pertencia ao lugar onde o chão era um tapete de estrelas, embora sua teiomosia insistisse em sussurrar o contrário em seus ouvidos.


Ele partiu com a alma ansiosa e os pés apressados. Seu espírito aventureiro desejava pertencer ao lugar onde o céu era forrado de estrelas e ele percorreu o caminho até lá sem olhar para trás. Andou por vales verdejantes, nadou em rios cristalinos, escalou montanhas frondosas, experimentou os frutos mais saborosos e conheceu almas que lhe despertaram sentimentos até então desconhecidos. Esquentou-se com o calor do sol, regelou-se com a frieza da neve e contemplou o céu forrado de estrelas até que tudo lhe pareceu familiar como se sempre tivesse feito parte dali.


Os ventos mudaram em uma noite particularmente sem luz, quando as vozes esquecidas ecoaram no fundo de seu coração cansado e ele desejou ter novamente as estrelas no chão embaixo dos seus pés. Sentiu a dolorosa ferroada de saudade de coisas que haviam sido soterradas pelo tempo e decidiu que era hora abandonar as estrelas acima de sua cabeça.


No dia de sua despedida, os que ficaram para trás disseram que ainda o veriam voltar. Ele não duvidou, pois sabia que agora que havia caminhado por aqueles dois mundos tão diferentes, jamais voltaria a pertencer a um só.