Quando ela finalmente chegou em
casa, depois do dia que pareceu ser o mais longo da sua vida, achou que não
passaria daquela noite. Cada célula do seu corpo parecia estar prestes a entrar
em colapso e ela teve a perturbadora sensação de que os pilares imaginários que
a mantiveram de pé até aquele momento começavam a sucumbir lentamente ao peso da
sua exaustão.
Agradeceu pela casa vazia e silenciosa.
Apesar de ser tema constante de brigas, a ausência do marido e filhos lhe pareceu uma benção
naquele momento. Só por aquela noite não precisaria se preocupar com o jantar,
com a tampa do vaso respingada, com as toalhas molhadas sobre a cama ou com a
mancha naquela blusa novinha que havia custado tão caro.
Livrou-se dos saltos, caminhou
sem pressa até o quarto, despiu-se da blusa social, do sutiã push up, da saia
lápis de corte reto e da calcinha modeladora sem costura que ajudavam a criar a
ilusão tão desejada pelos padrões de beleza que sussurravam ordens diariamente
aos seus ouvidos.
Levou seu corpo nu até a frente
da penteadeira atulhada de produtos de beleza e continuou sua desconstrução: retirou
a camada carmim dos lábios, o saudável rosado artificial das bochechas, a base
de alta cobertura e o rímel de efeito cílios postiços. Arrastou-se até o
banheiro, ligou a ducha de alta pressão na água gelada e mergulhou embaixo dela
com um movimento decidido.
Os cabelos perfeitamente
modelados com laquê minguaram, deixando escorrer pelo ralo o creme leave in termo ativado e o fluido
restaurador de pontas. O sabonete esfoliante lavou do corpo a loção tonificante
e o eau de parfum com fixador de
longa duração.
Quando saiu do chuveiro, ainda
pingando de exaustão, ela encarou-se no espelho e enxergou o que vinha fazendo questão
de não ver: o tempo havia levado embora a sua juventude e deixado no lugar um
reflexo triste do que ela havia sido. As curvas da cintura já não eram
luxuriantes como nos velhos tempo, a pele parecia menos firme e mais desbotada
e os cabelos caíam sobre os ombros como um tapete surrado. O rosto que a observava
também parecia corroído pelos anos: as marcas suaves nos cantos boca
denunciavam um sem fim de sorrisos desperdiçados e as manchas abaixo dos olhos
eram um lembrete constante das horas insones. Piscou duas vezes enquanto
tentava encontrar, no fundo dos olhos escuros, aquele brilho que outrora
desnorteou e encantou uma legião de admiradores. Não encontrou mais nada lá.
Sentiu um nó apertado formar-se
bem no meio do peito e precisou respirar fundo para que não sufocasse com ele.
Não adiantou. O aperto expandiu-se e começou uma subida lenta pela garganta,
apesar de suas tentativas desesperadas para desfazê-lo. Piscou várias vezes
quando os olhos se tornaram subitamente úmidos e embaçados. Tentou proibir a si
mesma de evocar aqueles sentimentos tão cuidadosamente sedimentados, mas,
naquela noite de silêncio e solidão, falhou. A primeira lágrima escorreu teimosa
pelo seu rosto cansado e no segundo seguinte sentiu que as frágeis barreiras de
uma represa mal construída se romperem em seu coração. Chorou pelas escolhas
erradas, pelos sacrifícios sem reconhecimento, pela raiva suprimida, pelas
angústias mal curadas, pelos anos mal vividos, pelas noites em claro, pela mesmice
torturante e por cada pequena coisa que a havia conduzido até o fundo daquele
precipício tão profundo e desolador.
Enquanto chorava, dobrando-se
sobre os próprios soluços, não percebeu quando começou a entrar em combustão. Distraída
demais com o pranto e com as dores da alma, não viu sua carne queimar e os
ossos ruírem em um monte de cinzas e soluços. Pranteou sem parar, até que seu
ser se resumiu a um monte de brasas vermelhas e só restou a certeza de que era
hora de recomeçar. Ela descendia de uma linhagem de fênix gloriosas e não havia
outro destino reservado para si, senão o de renascer das próprias cinzas.