quarta-feira, 13 de julho de 2016

Fênix




Quando ela finalmente chegou em casa, depois do dia que pareceu ser o mais longo da sua vida, achou que não passaria daquela noite. Cada célula do seu corpo parecia estar prestes a entrar em colapso e ela teve a perturbadora sensação de que os pilares imaginários que a mantiveram de pé até aquele momento começavam a sucumbir lentamente ao peso da sua exaustão.

Agradeceu pela casa vazia e silenciosa. Apesar de ser tema constante de brigas, a ausência do marido e filhos lhe pareceu uma benção naquele momento. Só por aquela noite não precisaria se preocupar com o jantar, com a tampa do vaso respingada, com as toalhas molhadas sobre a cama ou com a mancha naquela blusa novinha que havia custado tão caro.

Livrou-se dos saltos, caminhou sem pressa até o quarto, despiu-se da blusa social, do sutiã push up, da saia lápis de corte reto e da calcinha modeladora sem costura que ajudavam a criar a ilusão tão desejada pelos padrões de beleza que sussurravam ordens diariamente aos seus ouvidos.

Levou seu corpo nu até a frente da penteadeira atulhada de produtos de beleza e continuou sua desconstrução: retirou a camada carmim dos lábios, o saudável rosado artificial das bochechas, a base de alta cobertura e o rímel de efeito cílios postiços. Arrastou-se até o banheiro, ligou a ducha de alta pressão na água gelada e mergulhou embaixo dela com um movimento decidido.

Os cabelos perfeitamente modelados com laquê minguaram, deixando escorrer pelo ralo o creme leave in termo ativado e o fluido restaurador de pontas. O sabonete esfoliante lavou do corpo a loção tonificante e o eau de parfum com fixador de longa duração.

Quando saiu do chuveiro, ainda pingando de exaustão, ela encarou-se no espelho e enxergou o que vinha fazendo questão de não ver: o tempo havia levado embora a sua juventude e deixado no lugar um reflexo triste do que ela havia sido. As curvas da cintura já não eram luxuriantes como nos velhos tempo, a pele parecia menos firme e mais desbotada e os cabelos caíam sobre os ombros como um tapete surrado. O rosto que a observava também parecia corroído pelos anos: as marcas suaves nos cantos boca denunciavam um sem fim de sorrisos desperdiçados e as manchas abaixo dos olhos eram um lembrete constante das horas insones. Piscou duas vezes enquanto tentava encontrar, no fundo dos olhos escuros, aquele brilho que outrora desnorteou e encantou uma legião de admiradores. Não encontrou mais nada lá.

Sentiu um nó apertado formar-se bem no meio do peito e precisou respirar fundo para que não sufocasse com ele. Não adiantou. O aperto expandiu-se e começou uma subida lenta pela garganta, apesar de suas tentativas desesperadas para desfazê-lo. Piscou várias vezes quando os olhos se tornaram subitamente úmidos e embaçados. Tentou proibir a si mesma de evocar aqueles sentimentos tão cuidadosamente sedimentados, mas, naquela noite de silêncio e solidão, falhou. A primeira lágrima escorreu teimosa pelo seu rosto cansado e no segundo seguinte sentiu que as frágeis barreiras de uma represa mal construída se romperem em seu coração. Chorou pelas escolhas erradas, pelos sacrifícios sem reconhecimento, pela raiva suprimida, pelas angústias mal curadas, pelos anos mal vividos, pelas noites em claro, pela mesmice torturante e por cada pequena coisa que a havia conduzido até o fundo daquele precipício tão profundo e desolador.

Enquanto chorava, dobrando-se sobre os próprios soluços, não percebeu quando começou a entrar em combustão. Distraída demais com o pranto e com as dores da alma, não viu sua carne queimar e os ossos ruírem em um monte de cinzas e soluços. Pranteou sem parar, até que seu ser se resumiu a um monte de brasas vermelhas e só restou a certeza de que era hora de recomeçar. Ela descendia de uma linhagem de fênix gloriosas e não havia outro destino reservado para si, senão o de renascer das próprias cinzas.