terça-feira, 31 de outubro de 2017

Noite de Halloween

Quando a noite forrou o céu com as estrelas brilhantes e a lua cheia, ela soube que o momento que tanto havia esperado tinha chegado. Escapou furtivamente pela porta dos fundos, coberta pela capa escura que se agitava contra o vento frio das noites de outono. Ninguém deu falta dela: dentro de casa, havia a algazarra de vozes e risadas femininas, distraídas com os barmbracks recém-saídos do forno. Todas pareciam ansiosas para encontrar o anel que recheava um dos pequenos bolos de fruta e servia de prenúncio para um casamento breve. Mas ela sabia que o seu futuro não seria determinado por uma crendice boba como aquela.

Quando atingiu os limites da propriedade, olhou por cima dos ombros e vislumbrou os fogos de Hallowe’em ardendo nos picos das montanhas, deu-se conta, com uma ponta de preocupação, que as homenagens aos antepassados já haviam começado. Sabia que era um risco sair sozinha numa noite como aquela, quando o véu entre os mundos dos vivos e dos mortos ficava tão tênue. Por via das dúvidas, cobriu o rosto com a máscara de pele de ovelha que havia costurado cuidadosamente nas últimas semanas, só para garantir que não seria reconhecida por algum dos ancestrais que tivesse cruzado o véu para um passeio pelo mundo dos vivos naquela noite.  

Enquanto caminhava, evitou as lanternas feitas de abóboras que iluminavam o caminho: ela sabia que aquelas luzes haviam sido acessas para que os mortos não perdessem sua rota de volta pra casa e não queria correr o risco de cruzar o caminho de nenhum deles por descuido. Andou pela parte escura da estrada e precisou abafar um grito quando um gato preto, de olhos verdes e penetrantes bloqueou seu caminho. Ele a observou longamente, quase como se conhecesse seus planos.
- Xiu, vai embora! – ordenou com um sussurro, tentando afastar o animal inconveniente. Ele não se moveu e os olhos verdes cintilaram como duas esmeraldas. Ela deixou escapar um suspiro exasperado e adiantou-se um passo para passar por cima do animal, mas um uivo agudo na escuridão interrompeu a repreensão silenciosa do felino e o fez desaparecer entre as árvores numa corrida desesperada. A garota soltou um muxoxo irritada, repreendeu-se por ter deixado para trás a espingarda e as balas de prata, mas não retrocedeu: tinha coisas mais importantes para se preocupar do que com a lua cheia e visitantes indesejados.

Quando a pequena trilha ladeada por árvores desembocou numa estrada de terra vermelha, ela parou a apertou a capa contra o corpo, parecendo subitamente inofensiva. Sentiu que as mãos tremiam, mas o vento gelado que soprava naquela área descampada em nada tinha a ver com a tremedeira. Olhou para os dois lados e esperou, com o coração martelando violentamente dentro do peito. E se ele não viesse? E se sua promessa não tivesse sido verdadeira?

Mas ele veio. Despontou entre as árvores no fim da clareira, coberto por sua própria capa escura e máscara de pele de coelho. Aproximou-se silenciosamente de sua dama solitária, cobriu-lhe os olhos com suas mãos enluvadas e sorriu quando sentiu os músculos do rosto da jovem se contraírem em um sorriso semelhante ao seu. Ela não teve medo, nem mesmo quando foi surpreendida por mãos que bloqueavam seus olhos. Conhecia aquele toque e o cheiro de relva que sempre sentia quando se aproximava demais dele. Sorriu, desvencilhou-se das mãos fortes e arremessou-se para os braços de seu amado. Percebeu que ele também estava mascarado e riu da crença tola dos dois.
- É só pra garantir que ninguém vai nos reconhecer. - ele se explicou, dando de ombros, um tanto sem jeito. - Está pronta pra ir?
- Desde o minuto que você propôs. - ela concordou, rendendo-se ao beijo que, por tantas, vezes havia roubado seu sossego ao longo daquelas intermináveis semanas. Beijaram-se longamente, depois cruzaram as mãos e puseram-se a caminhar pela estrada, iniciando a maior aventura de suas vidas.

Fugiram sem olhar para trás ou temer qualquer coisa. Não ouviram os sussurros proferidos pelas bocas vazias daqueles que vagavam entre lanternas de abóbora, nem as risadas amargas das bruxas que faziam sua dança perigosa à luz do luar. Não ouviram o uivos cheios de lamento do lobisomem, nem o piado agourento da coruja que prenunciava tempos sombrios.

Quando eles desapareceram para nunca mais serem vistos, todos afirmaram que os dois haviam se perdido entre as criaturas da noite de Hallowe’em. Choraram seus mortos, lamentaram pela tolice juvenil e nunca mais falaram sobre o trágico desfecho daquele  amor proibido.

Muitos anos depois, porém, enquanto ela assava os barmbracks para as filhas e ele preparava as lanternas de abóbora para iluminar o caminho dos que cruzavam o véu entre os mundos, ambos concordavam que a melhor decisão para fugir dos vivos havia sido a de atrever-se a caminhar entre os mortos.

sábado, 23 de setembro de 2017

Primavera

Desde que fora plantada no pequeno canteiro junto ao muro cinzento no final do terreno, Primavera foi considerada uma estranha por todas as outras flores do jardim. Os canteiros bem cuidados pelo jardineiro exibiam uma coleção das mais diversas e coloridas espécies, que se revezavam entre as estações do ano para encantar os frequentes visitantes do jardim. Primavera fixou-se bem na terra adubada, alimentou-se dos nutrientes revigorantes e lançou seus galhos de trepadeira muro acima, espalhando o tom rosado de suas folhas por onde antes só havia concreto. Mesmo assim as outras flores do jardim a consideravam uma flor ordinária demais para ser apreciada.

As Orquídeas, com suas pétalas de cores exuberantes e pintalgadas, debochavam de Primavera pela facilidade com que ela crescia em qualquer terreno. Enquanto a Orquídea exigia do jardineiro cuidados constantes com a umidade em suas raízes e luz direta em suas folhas, Primavera apenas aproveitava o sol e a água que, vez o outra, molhava sua terra.

As Tulipas, com seu ar aristocrático, gabavam-se do fascínio que exerciam com suas cores vivas e sua forma elegante. Orgulhavam-se do enorme esforço que o jardineiro precisava fazer para manter sua terra constantemente resfriada e do cuidado em mantê-las sempre abrigadas do calor intenso. Primavera continuava presa ao muro, esforçando-se para absorver os nutrientes da terra que ia ficando cada vez mais embaixo.

As Rosas, solitárias em seus caules bem aparados, desprezavam o modo como Primavera se espalhava pelo ambiente. Estavam acostumadas aos cuidados constantes do jardineiro, que se esforçava para manter longe as pragas, mesmo quando os espinhos das rosas arrancavam sangue de seus dedos dedicados. Primavera sabia o que todas achavam dela, mas tinha coisas mais importantes para se ocupar. Lá do alto do muro, elas eram nada além de flores bonitas e coloridas em um jardim bem cuidado.

Na primeira manhã em que o jardineiro não apareceu para dar bom dia às suas plantas, houve um grande burburinho no jardim. Quando ele deixou de aparecer nos dias seguintes, o caos se instaurou em cada um dos canteiros: as Tulipas protestaram contra os raios de sol do meio dia que batiam dolorosamente em suas folhas, as Orquídeas lançaram lamentos revoltados contra a terra seca, os Crisântemos resmungaram contra os ventos cortantes do fim da tarde e as Rosas choramingaram contra as lagartas e pulgões que começaram a rondar a terra ao redor. Tudo piorou ainda mais quando nuvens cor de chumbo trouxeram uma chuva que inundou os canteiros e escondeu o sol por vários dias. O jardim, que normalmente era uma sinfonia de sons e perfumes, tornou-se triste e silencioso. Do alto do muro que já não era mais cinzento, Primavera sentiu pena de ver suas vizinhas vaidosas tão desamparadas. Ela também havia sentido sede, calor e sofrera com os ventos e as tempestades fortes, mas sua natureza, classificada pelas outras como "ordinária", havia lhe garantido uma capacidade extraordinária de adaptação a grandes variações climáticas e longos períodos de abandono.

Quando o jardineiro retornou ao lar, finalmente recuperado de um mal súbito que lhe roubou muitos dias de vida, encontrou seu amado jardim devastado. O sol e a chuva haviam ressecado e encharcado suas Tulipas, Cravos, Crisântemos, Girassóis e Orquídeas, enquanto suas estimadas Rosas padeceram com o peso das pragas que chegaram com a umidade e a ausência dos remédios. Suspirou desalentado quando viu o trabalho de tantos meses desperdiçado, mas concluiu que não estava tudo perdido quando seus olhos pousaram sobre o que antes era o muro cinzento do quintal. A pequena muda de Primavera havia vingado e espalhado seus galhos repletos de folhas rosas por toda a extensão do concreto. Ainda havia vida por ali, no fim das contas.

O jardineiro alongou os braços pálidos pela falta de sol, estalou os dedos destreinados, encontrou a tesoura de poda no bolso do avental e decidiu recomeçar o trabalho imediatamente, começando por dar atenção àquela linda primavera que havia salvo o seu dia.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Crônica sobre o Câncer



Não sei bem que conjunção astral rolou essa semana, mas uma galera decidiu que era um bom momento para me dar conselhos sobre como evitar um câncer. Acho super genuína essa preocupação com a minha saúde, mas confesso que todos esses alertas me despertaram mais preguiça do que preocupação.

Não pode adoçante no leite (desnatado) porque tem um monte de substâncias cancerígenas nesse açúcar falso. Mas açúcar também não pode, tá? Porque ele vira gordura, se acumula lá nas ancas e gente gorda tem propensão a desenvolver o quê? Câncer! 

Meu cabelo também caiu em “não conformidade”. O esquadrão da beleza natural me enquadrou, na (vã) tentativa de me convencer a aceitar de volta os cachos que eu detesto desde a mais tenra infância. Adivinha sob qual argumento? Esse aí! O câncer tá lá dentro dos potinhos do salão, esperando pra me atacar.

Depilação a laser entrou na classificação “perigo iminente”. O doutor Google afirma que a exposição à luz pulsada e/ou ao laser pode atacar as minhas células e desenvolver “o famigerado”. E já que estamos falando sobre cuidados com a pele, descobri que é infração gravíssima sair de casa sem passar protetor solar. Mas tem que escolher muito bem a marca do protetor, porque muitas delas possuem uma dúzia de fragrâncias químicas que causam, adivinhem? Câncer!

Meu almoço recebeu um cartão vermelho: fui repreendida por insistir em comer carne e fazer parte da enorme parcela da sociedade que está clamando por um câncer no intestino. Mas e se eu virar vegetariana? Tô salva? Mais ou menos. Porque aí tem que se preocupar com os agrotóxicos das frutas e legumes, além dos alimentos transgênicos. Chuta só o que eles causam? Yes, câncer!

Antes que se instaure a indignação na minha timeline, deixa eu me defender: não estou negando os malefícios gerados pelo meu consumo. Tô super ciente, juro. Concordo que as informações sobre tudo o que está por trás dos rótulos que entram nas nossas casas devem ser amplamente divulgadas e que tem muita gente ganhando dinheiro às custas da nossa saúde.

Mas sabe o que mais pode causar câncer, galera? Ódio. Distribuir desamor e violência por aí só porque alguém não tem a mesma cor de pele que a sua ou uma orientação sexual diferente. Porque adora um Deus que responde por outro nome, possui uma ideologia política que diverge da sua ou torce pra outro time de futebol (mesmo que seja aquele timeco de várzea).

Fingir também pode causar câncer. Fingir que é feliz no trabalho só para não perder os 40% do FGTS, fingir que é feliz naquele relacionamento falido só para não ser rotulado de “sozinho”, fingir que gosta de pessoas que você chama de “amigos” só porque elas podem te trazer algum benefício. Fingir que gosta de malhar quando você gosta mesmo é de dormir. Fingir que você gosta de música clássica quando é aquele sertanejo sofrência que te faz sorrir. Fingir que não viu aquela mensagem tão aguardada no whatsapp só porque alguém disse que você não pode responder na mesma hora. Fingir que gosta daquele colega de trabalho quando você quer mesmo é mandar ele pro inferno e também fingir que você tem um padrão de vida mais alto do que sua pilha de boletos vencidos. 

Tem mais um monte de coisas que pode causar câncer e eu poderia ficar aqui o dia inteiro listando elas. Mas vocês pegaram o espírito da coisa, né? Temos, sim, que nos preocupar com os alimentos transgênicos, com os raios UV e com a química dos produtos de beleza, mas precisamos atentar para as pequenas coisas que nós aceitamos só porque nos disseram que “devem ser assim” e que acabam por envenenar gradativamente a nossa rotina. As verdades não ditas, o cinismo social e aqueles “sapos” engolidos fazem, a longo prazo, muito mais estrago nos nossos corpos e mentes do que uns bifões de picanha ou um domingo de praia torrando no sol.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Loteria da Amizade


Mariana conferiu as horas e deixou escapar um muxoxo de irritação. O lugar vazio à sua frente e a solitária taça de vinho refletiam mais ou menos o estado de espírito dela naquela noite de inverno. O dia havia sido pesado, daqueles que parecem destinados a nunca terminar, e ela precisou lutar com todas as suas forças contra a vontade de ir direto para casa, se enfiar embaixo do edredom e se presentear com uma barra de chocolate e algumas horas de Netflix. Por que sempre se sujeitava àquele tipo de situação? O garçom aproximou-se, parecendo mais constrangido do que ela.

- Me dá só mais 15 minutos, por favor? - ela pediu, fazendo seu melhor olhar de pedinte. - E pode trazer mais uma taça de vinho pra mim? 

O garçom assentiu, parecendo contrariado, e se afastou. Ela olhou aborrecida para a tela do celular, jurou que só esperaria mais cinco minutos e prometeu a si mesma que aquela seria a última vez que passaria por aquela situação.

- Amiiiiiiiga! - a voz familiar antecipou-se à chegada barulhenta de Carol. No segundo seguinte, Mariana foi engolida por um abraço apertado, seguido pelo turbilhão de ruídos que a amiga sempre fazia ao chegar em qualquer ambiente. - Desculpa! Eu juro que tentei sair no horário, mas aquela vaca da contabilidade me ligou bem na hora em que eu estava desligando o computador. Com umas perguntas idiotas de fazer vergonha! - interrompeu brevemente o longo discurso e olhou ao redor. - Ué, cadê todo mundo? E cadê a cerveja? Vinho não vai dar conta do meu nível de estresse hoje, não.

Falou isso enquanto roubava um gole da taça de vinho tinto de Mariana, largava a bolsa sobre uma das cadeiras e reclamava do motorista do Uber, que havia dado uma volta boba no quarteirão só para atrasá-la ainda mais.

- Dá pra ouvir a sua voz lá da porta do restaurante, Carol. - Pedro anunciou, materializando-se do nada na companhia de Juliana. Nenhuma das duas tinha notado a chegada do casal, que cumprimentou as duas amigas com bem menos estardalhaço. Sentaram-se lado a lado, com as mãos entrelaçadas, do jeitinho que faziam desde sempre. Eram o casal mais apaixonado que Mariana conhecia e a prova de que o amor verdadeiro ainda existia.

- Vocês estão muito atrasados! - Mariana rosnou. - Como sempre! E, como sempre, eu tenho que ficar implorando ao garçom pra não separar as mesas e... 

Não conseguiu terminar a bronca. Viu Dani entrar pela porta, o semblante demonstrando que ainda não havia superado o fim do noivado, mas um sorriso de quem parecia estar se esforçando para seguir em frente. A recém chegada foi recebida com uma onda de beijos e abraços afetuosos, reforçada poucos minutos depois pela chegada de Pedro. Ele suspirou aliviado quando se livrou do terno, reclamou da falta de cerveja na mesa e ergueu a mão para chamar o garçom, enquanto o falatório desordenado e típico da turma tomou conta da mesa. Meia hora depois Tatiana se juntou aos amigos, vestida em sua roupa de malhar de estampas psicodélicas e avisando que não ia beber porque estava de dieta. 

Uma onda de indignação dominou a mesa e, enquanto ouvia os protestos e as ordens para expulsar a abstêmia do recinto, Mariana sorriu e entendeu porque havia enfrentado o frio, a meia hora de espera solitária e a vontade de se enfiar embaixo do edredom. Aquela turma barulhenta, composta de gente tão diferente, sempre fazia seu dia valer a pena e tornava noites de inverno como aquela bem mais agradáveis de se viver. Sorriu, sentindo-se tremendamente sortuda por ter amigos tão especiais, e juntou-se ao coro que exigia a cerveja e o fim da dieta da Tati.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Auditoria dos Cupidos

Naquele ano, a auditoria anual dos Cupidos aconteceria na noite do Dia dos Namorados, encabeçada por um dos Querubins mais sábios de seu Coro. O procedimento já era uma rotina no plano angelical: a natureza atrapalhada dos Cupidos exigia que, vez ou outra, anjos de Círculos mais elevados fizessem intervenções para confirmar que as coisas no plano terreno estavam nos eixos. O amor era fundamental para o bom funcionamento da raça humana, mas havia um longo histórico de flechas atingindo alvos errados que demandaram muito trabalho para todas as Ordens Angelicais.

O Querubim acomodou-se em seu posto, acionou seus monitores celestiais e começou seu trabalho, bem a tempo de encontrar os dois primeiros nomes de sua amostra em uma situação que parecia perfeitamente de acordo com os registros apresentados pelos Cupidos.

Carolina e Pedro terminavam o jantar especial de Dia dos Namorados, que acontecia em um dos restaurantes mais badalados da cidade. Iluminados pela luz de velas, os dois bebericavam os últimos goles do dispendioso vinho de rótulo premiado sugerido pelo garçom. A noite havia sido irretocável, pontuada com flores, presentes, fotografias e um jantar delicioso. 

- Você me dá um minuto, amor? - ela perguntou, quando já não foi mais capaz de esconder a ansiedade com seu sorriso perfeito. - Preciso ir ao banheiro. Coisas de mulher.

Agarrou a bolsa de aparência sofisticada deixada sobre a mesa e, antes mesmo de receber uma resposta, arremessou-se na direção do banheiro, enquanto tirava o aparelho celular de dentro da bolsa. Sorriu com sinceridade ao identificar, no visor do aparelho, a mensagem “Feliz Dia dos Namorados” de um remetente que não era sua companhia à mesa de jantar. Todas as declarações de amor diziam que Carol amava Pedro, mas era Thiago que agitava de verdade o seu coração. Ela releu a mensagem, sorriu e respondeu com a ternura estampada no olhar.

Pedro deu um último grande gole na taça de vinho quando Carol saiu da mesa e suspirou desapontado. Mesmo em noites perfeitas como aquela, sentia que havia alguma coisa errada entre os dois e se atormentava com aquela sensação. Eles se davam muito bem, tinham gostos parecidos, a aprovação das famílias e formavam um casal adorado por todos. Mas ele continuava assombrado pelo sentimento de que havia feito a escolha errada. E se tivesse aceitado ir ao show com a Thaís ao invés de ir beber com os amigos na noite em que conhecera Carol? E se tivesse declinado o convite para a festa de Reveillon com a Carol para acampar com a Thaís em Ilha Grande? Onde estaria naquela noite do Dia dos Namorados, se tivesse dado uma chance aos olhos escuros e à gargalhada sonora da Thaís?

Thiago desceu para dar uma volta com o cachorro em busca de sossego. Dentro de casa, tinha certeza, Helena havia começado com a choradeira que sempre se seguia às discussões. Mas, naquela noite, a culpa era dela e ele estava com a consciência tranquila.

- Sorte sua ser cachorro. - ele comentou com o vira-lata, que farejava o chão indiferente à longa discussão que havia começado após o suposto jantar romântico de Dia dos Namorados. Thiago havia combinado com Helena que não haveria gastos desnecessários com jantares ou presentes naquele ano. O carro novo e a reforma do banheiro tinham levado embora todas as reservas do casal, mas a teimosia de Helena não deixava ela raciocinar claramente. Quando chegou em casa naquela noite, encontrou a sala iluminada pela luz de velas e nenhum sinal do filho pequeno. Perguntar se a luz havia sido cortada foi apenas o primeiro dos vários erros que ele cometeria pelas próximas horas e que resultariam em um longo discurso sobre a sua completa falta de sensibilidade e os rumos que aquele casamento estava seguindo.
 
Enquanto acompanhava o cachorro com passos sem pressa, Thiago lembrou-se das mensagens interessantes que tinha trocado com Carol um pouco mais cedo e seu semblante desanuviou-se. Desejou que Helena fosse simples e divertida como Carolina , prometeu a si mesmo que encontraria mais tempo para dar atenção às ideias malucas da garota e, quase sem pensar, pegou o celular, digitou um “Feliz Dia dos Namorados” e enviou a mensagem à jovem que parecia ter o dom de fazê-lo rir quando o mundo estava engajado em tornar sua rotina um inferno. 

Helena secou as lágrimas do rosto com o mesmo pano de prato que havia usado para secar as delicadas taças de cristal. Prometeu a si mesma que não voltaria a humilhar-se pela atenção do marido, nem perderia mais nenhum minuto da sua vida fazendo força sozinha para salvar o casamento. Como primeiro ato dessa nova fase, decidiu que aproveitaria a noite de folga com ou sem Thiago. Abandonou o resto da louça por lavar, pegou o celular e mandou uma mensagem para a amiga mais animada de sua lista de contatos. Thaís respondeu quase que imediatamente e foram necessárias apenas algumas poucas linhas para que um plano B animadíssimo fosse traçado. Em meia hora Helena estava sentada no sofá da casa de Thaís, cercada de várias outras estranhas que se tornaram sua amiga de infância em apenas duas taças de vinho. 

Helena só se despediu de Thaís quando o dia começou a clarear no horizonte, com um abraço demorado e uma longa lista de coisas para fazerem juntas dali em diante. Elas ainda demorariam algum tempo a perceber, mas aquela seria uma das melhores noites de Dia dos Namorados de suas vidas.

Quando o tão aguardado relatório de auditoria foi finalizado, houve enorme agitação entre as várias Esferas Celestiais. O documento emitido pela Terceira Hierarquia Angelical declarou que estava tudo em ordem com os níveis de amor entre as criaturas de Deus, mas recomendou a imediata revisão de todas as flechas em estoque e uma nova rodada de treinamento para todos os Anjos do Amor que estivessem exercendo suas funções no plano terreno. Ainda de acordo com Querubim, as amostras Carolina, Pedro, Thiago, Helena e Thaís eram provas evidentes e irrefutáveis de que os anjos Cupidos andavam mais atrapalhados do que nunca.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Desencontros Planejados



Mariana acordou sem disposição para nenhuma das coisas que havia programado para aquele sábado de sol. Faltou à aula de spinning, cancelou a depilação, furou com a manicure, pulou a ida à lavanderia, postergou a visita ao supermercado e foi à praia. Aquela tinha sido uma semana difícil, de horas intermináveis e problemas sem fim. Sentia-se extremamente sozinha debaixo daquele céu azul sem nuvens, apesar das notificações que eventualmente se acendiam na enorme tela do smartphone. Recostou-se na cadeira de praia alugada, ajeitou as alças do biquíni, fechou os olhos e suspirou. Tentou afastar da mente os planos frustrados, a viagem para conhecer a neve que havia sido cancelada antes mesmo de ganhar vida, as mensagens de boa noite que pararam de chegar e aquela sensação de que nunca seria capaz de escolher a pessoa certa.

Henrique acordou com a cabeça latejando a boca seca. Na escuridão do quarto, tateou o telefone e constatou que era tarde demais para ainda estar na cama em um sábado de sol. Prometendo a si mesmo que nunca mais beberia tanto numa sexta à noite, verificou no celular as suas opções para o tempo livre, mas não gostou de nenhuma: o futebol da turma da firma já estava no final e o almoço com a turma do MBA não tinha cara de que ia vingar. Decidiu-se por uma corrida na praia, para esticar as pernas e expulsar o álcool do organismo. Quando saiu do banho, visualizou a mensagem da menina que havia saído do seu apartamento com o nascer do dia, mas não se deu ao trabalho de responder. Calçou os tênis e entregou-se à alguns quilômetros de corrida para esvaziar a mente e colocar o corpo de volta aos eixos.

Mariana jogou o celular dentro da bolsa, depois de terminar o incansável ritual de constatar como todas as pessoas pareciam tão mais felizes que ela nas redes sociais. Curtiu algumas fotos de casais apaixonados, comentou alguns vídeos de bebês encantadores, impressionou-se com alguns corpos malhados em roupas incríveis e viu-se perdida novamente naquela torrente de perguntas que sempre se fazia quando tentava entender por onde tinha andado quando toda aquela alegria foi distribuída para os seus amigos e conhecidos. O que o destino tinha reservado para ela, afinal de contas?

Henrique encerrou a corrida antes de chegar aos sete quilômetros. O sol escaldante aliado ao álcool, que parecia ter impregnado cada célula do corpo, tiveram o efeito de uma âncora naquela manhã. Largou-se no primeiro banco vazio que encontrou no caminho, alongou com má vontade os músculos das pernas e distraiu-se com o celular enquanto esperava os batimentos cardíacos desacelerarem. A foto postada na noite anterior, em uma festa exclusiva cercada de gente bonita, ainda estava rendendo curtidas na rede social e muitos comentários mais-do-mesmo no grupo de whatsapp. Guardou o aparelho no bolso, passou a camiseta encharcada pelo rosto e decidiu que talvez não fosse uma má ideia entrar no mar. Enquanto tirava os tênis, correu os olhos pela areia lotada até localizar uma mulher sozinha que parecia amigável o suficiente para dar uma olhada nas suas roupas enquanto ele estivesse no mar.

Mariana havia cedido à curiosidade e decidiu dar uma olhadinha nas atividades das redes sociais do ex-namorado. Não havia nenhum rosto desconhecido, nem comentários que pudessem denunciar que ele já estivesse com alguém, mas ele parecia estar vivendo bastante bem desde que os dois haviam terminado. Deu um zoom na última foto postada, só para confirmar que ele não estava perto demais da mulher seminua que sorria junto ao grupo de amigos, quando um estranho se aproximou e chamou sua atenção.

- Bom dia. - o homem começou, meio sem jeito, pingando de suor como se tivesse corrido uma maratona. - Desculpa te atrapalhar aí... Mas você pode dar uma olhada nas minhas coisas enquanto eu dou um mergulho? Vai ser bem rapidinho.
- Claro, deixa aí. - ela respondeu com um sorriso rápido e observou ele amontoar os tênis de corrida, bermuda e uma camisa ensopada na areia próxima aos seus pés. 
   
Henrique cumpriu a promessa e deu apenas alguns mergulhos rápidos. Agora que a ressaca havia passado, começou a sentir fome e decidiu dar uma passada no Açaí antes de ir pra casa. Resgatou seus pertences com uma nova rodada de agradecimentos, recebeu o sorriso distraído da mulher que parecia concentradíssima em seu celular e, enquanto voltava para o calçadão, recebeu uma mensagem da garota da academia. Ela era tão insistente quanto bonita e ele sabia como aquela história terminaria, mas não tinha planos para o sábado à tarde e decidiu responder.

Mariana e Henrique eram almas gêmeas, daquelas que o destino prepara com bastante capricho. Quando se conheceram, alguns anos depois daquele sábado ensolarado, ninguém teve dúvida de que eles ficariam juntos para sempre. Henrique abandonou as festas com uma facilidade que colocou seus parceiros de noitada em estado de choque, enquanto Mariana finalmente encontrou alguém que topasse suas intermináveis ideias malucas com entusiasmo quase infantil. Namoraram, viajaram, noivaram e uniram suas vidas cercados de amigos e embaixo de uma chuva de arroz. 

Experimentaram muitos dias de alegria, enfrentaram com coragem os dias de tristeza e foram felizes como um casal normal, numa casa financiada por muitos anos e cheia de amor. Às vezes, em noites chuvosas onde se enroscavam embaixo do edredom, os dois lamentavam o tempo que haviam desperdiçado até se encontrarem e se perguntavam como teria sido a vida se eles tivessem se conhecido antes.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Calmaria


Ela chegou ao mundo amparada pelos Ventos do Leste e regida pelo signo de fogo. Não houve um único bom presságio sobre o futuro quando seu choro foi aclamado pelo ribombar dos trovões através do céu cor de chumbo.

Os anos que se seguiram foram marcados por manhãs nebulosas e tardes cinzentas. Naquele canto do mundo, ela aprendeu rapidamente que as tempestades mais violentas chegavam de forma repentina e viu um sem fim de navios naufragarem nas águas agitadas do único mar que conheceu. Acostumou-se à desolação causada pelas torrentes, abandonou o afeto que sentia por todas as coisas levadas pelas constantes ventanias e acostumou-se ao desassossego. A escuridão das noites sem lua escondia vozes que sussurravam palavras de desterro, que ela própria recitava com a serenidade de quem sabe que não há mais nada a temer. Aquele era o seu território e nada poderia ameaça-la em seus domínios.

Quando os Ventos do Norte sopraram para aquelas bandas, trouxeram agitação e mudanças, mas não do tipo que ela esperava. Houve mais luz do que seus olhos estavam acostumados, mais silêncio do que seus ouvidos pareciam capazes de suportar e muito mais calor do que se lembrava de já ter experimentado.

Quando as vozes da noite anunciaram o fim da degradação, ela temeu pelo futuro de tudo o que conhecia e decidiu revidar. Convocou os ventos de seus dias mais remotos, evocou as tormentas mais devastadoras de suas memórias e agarrou-se à petulância de que nada poderia se opor à força da sua essência. 

Lutou com todas as suas armas até a exaustão, mas as correntes da mudança subjugaram os seus artifícios e  varreram para longe toda a forma de poder que ela conhecia até então. No instante em que o sol despontou no horizonte, espalhando sua luz esplendorosa pelos quatro cantos daquela terra devastada, ela entendeu que finalmente havia chegado o momento de conhecer a calmaria, depois de tanto tempo acostumada apenas às tempestades.