segunda-feira, 12 de junho de 2017

Auditoria dos Cupidos

Naquele ano, a auditoria anual dos Cupidos aconteceria na noite do Dia dos Namorados, encabeçada por um dos Querubins mais sábios de seu Coro. O procedimento já era uma rotina no plano angelical: a natureza atrapalhada dos Cupidos exigia que, vez ou outra, anjos de Círculos mais elevados fizessem intervenções para confirmar que as coisas no plano terreno estavam nos eixos. O amor era fundamental para o bom funcionamento da raça humana, mas havia um longo histórico de flechas atingindo alvos errados que demandaram muito trabalho para todas as Ordens Angelicais.

O Querubim acomodou-se em seu posto, acionou seus monitores celestiais e começou seu trabalho, bem a tempo de encontrar os dois primeiros nomes de sua amostra em uma situação que parecia perfeitamente de acordo com os registros apresentados pelos Cupidos.

Carolina e Pedro terminavam o jantar especial de Dia dos Namorados, que acontecia em um dos restaurantes mais badalados da cidade. Iluminados pela luz de velas, os dois bebericavam os últimos goles do dispendioso vinho de rótulo premiado sugerido pelo garçom. A noite havia sido irretocável, pontuada com flores, presentes, fotografias e um jantar delicioso. 

- Você me dá um minuto, amor? - ela perguntou, quando já não foi mais capaz de esconder a ansiedade com seu sorriso perfeito. - Preciso ir ao banheiro. Coisas de mulher.

Agarrou a bolsa de aparência sofisticada deixada sobre a mesa e, antes mesmo de receber uma resposta, arremessou-se na direção do banheiro, enquanto tirava o aparelho celular de dentro da bolsa. Sorriu com sinceridade ao identificar, no visor do aparelho, a mensagem “Feliz Dia dos Namorados” de um remetente que não era sua companhia à mesa de jantar. Todas as declarações de amor diziam que Carol amava Pedro, mas era Thiago que agitava de verdade o seu coração. Ela releu a mensagem, sorriu e respondeu com a ternura estampada no olhar.

Pedro deu um último grande gole na taça de vinho quando Carol saiu da mesa e suspirou desapontado. Mesmo em noites perfeitas como aquela, sentia que havia alguma coisa errada entre os dois e se atormentava com aquela sensação. Eles se davam muito bem, tinham gostos parecidos, a aprovação das famílias e formavam um casal adorado por todos. Mas ele continuava assombrado pelo sentimento de que havia feito a escolha errada. E se tivesse aceitado ir ao show com a Thaís ao invés de ir beber com os amigos na noite em que conhecera Carol? E se tivesse declinado o convite para a festa de Reveillon com a Carol para acampar com a Thaís em Ilha Grande? Onde estaria naquela noite do Dia dos Namorados, se tivesse dado uma chance aos olhos escuros e à gargalhada sonora da Thaís?

Thiago desceu para dar uma volta com o cachorro em busca de sossego. Dentro de casa, tinha certeza, Helena havia começado com a choradeira que sempre se seguia às discussões. Mas, naquela noite, a culpa era dela e ele estava com a consciência tranquila.

- Sorte sua ser cachorro. - ele comentou com o vira-lata, que farejava o chão indiferente à longa discussão que havia começado após o suposto jantar romântico de Dia dos Namorados. Thiago havia combinado com Helena que não haveria gastos desnecessários com jantares ou presentes naquele ano. O carro novo e a reforma do banheiro tinham levado embora todas as reservas do casal, mas a teimosia de Helena não deixava ela raciocinar claramente. Quando chegou em casa naquela noite, encontrou a sala iluminada pela luz de velas e nenhum sinal do filho pequeno. Perguntar se a luz havia sido cortada foi apenas o primeiro dos vários erros que ele cometeria pelas próximas horas e que resultariam em um longo discurso sobre a sua completa falta de sensibilidade e os rumos que aquele casamento estava seguindo.
 
Enquanto acompanhava o cachorro com passos sem pressa, Thiago lembrou-se das mensagens interessantes que tinha trocado com Carol um pouco mais cedo e seu semblante desanuviou-se. Desejou que Helena fosse simples e divertida como Carolina , prometeu a si mesmo que encontraria mais tempo para dar atenção às ideias malucas da garota e, quase sem pensar, pegou o celular, digitou um “Feliz Dia dos Namorados” e enviou a mensagem à jovem que parecia ter o dom de fazê-lo rir quando o mundo estava engajado em tornar sua rotina um inferno. 

Helena secou as lágrimas do rosto com o mesmo pano de prato que havia usado para secar as delicadas taças de cristal. Prometeu a si mesma que não voltaria a humilhar-se pela atenção do marido, nem perderia mais nenhum minuto da sua vida fazendo força sozinha para salvar o casamento. Como primeiro ato dessa nova fase, decidiu que aproveitaria a noite de folga com ou sem Thiago. Abandonou o resto da louça por lavar, pegou o celular e mandou uma mensagem para a amiga mais animada de sua lista de contatos. Thaís respondeu quase que imediatamente e foram necessárias apenas algumas poucas linhas para que um plano B animadíssimo fosse traçado. Em meia hora Helena estava sentada no sofá da casa de Thaís, cercada de várias outras estranhas que se tornaram sua amiga de infância em apenas duas taças de vinho. 

Helena só se despediu de Thaís quando o dia começou a clarear no horizonte, com um abraço demorado e uma longa lista de coisas para fazerem juntas dali em diante. Elas ainda demorariam algum tempo a perceber, mas aquela seria uma das melhores noites de Dia dos Namorados de suas vidas.

Quando o tão aguardado relatório de auditoria foi finalizado, houve enorme agitação entre as várias Esferas Celestiais. O documento emitido pela Terceira Hierarquia Angelical declarou que estava tudo em ordem com os níveis de amor entre as criaturas de Deus, mas recomendou a imediata revisão de todas as flechas em estoque e uma nova rodada de treinamento para todos os Anjos do Amor que estivessem exercendo suas funções no plano terreno. Ainda de acordo com Querubim, as amostras Carolina, Pedro, Thiago, Helena e Thaís eram provas evidentes e irrefutáveis de que os anjos Cupidos andavam mais atrapalhados do que nunca.