terça-feira, 31 de outubro de 2017

Noite de Halloween

Quando a noite forrou o céu com as estrelas brilhantes e a lua cheia, ela soube que o momento que tanto havia esperado tinha chegado. Escapou furtivamente pela porta dos fundos, coberta pela capa escura que se agitava contra o vento frio das noites de outono. Ninguém deu falta dela: dentro de casa, havia a algazarra de vozes e risadas femininas, distraídas com os barmbracks recém-saídos do forno. Todas pareciam ansiosas para encontrar o anel que recheava um dos pequenos bolos de fruta e servia de prenúncio para um casamento breve. Mas ela sabia que o seu futuro não seria determinado por uma crendice boba como aquela.

Quando atingiu os limites da propriedade, olhou por cima dos ombros e vislumbrou os fogos de Hallowe’em ardendo nos picos das montanhas, deu-se conta, com uma ponta de preocupação, que as homenagens aos antepassados já haviam começado. Sabia que era um risco sair sozinha numa noite como aquela, quando o véu entre os mundos dos vivos e dos mortos ficava tão tênue. Por via das dúvidas, cobriu o rosto com a máscara de pele de ovelha que havia costurado cuidadosamente nas últimas semanas, só para garantir que não seria reconhecida por algum dos ancestrais que tivesse cruzado o véu para um passeio pelo mundo dos vivos naquela noite.  

Enquanto caminhava, evitou as lanternas feitas de abóboras que iluminavam o caminho: ela sabia que aquelas luzes haviam sido acessas para que os mortos não perdessem sua rota de volta pra casa e não queria correr o risco de cruzar o caminho de nenhum deles por descuido. Andou pela parte escura da estrada e precisou abafar um grito quando um gato preto, de olhos verdes e penetrantes bloqueou seu caminho. Ele a observou longamente, quase como se conhecesse seus planos.
- Xiu, vai embora! – ordenou com um sussurro, tentando afastar o animal inconveniente. Ele não se moveu e os olhos verdes cintilaram como duas esmeraldas. Ela deixou escapar um suspiro exasperado e adiantou-se um passo para passar por cima do animal, mas um uivo agudo na escuridão interrompeu a repreensão silenciosa do felino e o fez desaparecer entre as árvores numa corrida desesperada. A garota soltou um muxoxo irritada, repreendeu-se por ter deixado para trás a espingarda e as balas de prata, mas não retrocedeu: tinha coisas mais importantes para se preocupar do que com a lua cheia e visitantes indesejados.

Quando a pequena trilha ladeada por árvores desembocou numa estrada de terra vermelha, ela parou a apertou a capa contra o corpo, parecendo subitamente inofensiva. Sentiu que as mãos tremiam, mas o vento gelado que soprava naquela área descampada em nada tinha a ver com a tremedeira. Olhou para os dois lados e esperou, com o coração martelando violentamente dentro do peito. E se ele não viesse? E se sua promessa não tivesse sido verdadeira?

Mas ele veio. Despontou entre as árvores no fim da clareira, coberto por sua própria capa escura e máscara de pele de coelho. Aproximou-se silenciosamente de sua dama solitária, cobriu-lhe os olhos com suas mãos enluvadas e sorriu quando sentiu os músculos do rosto da jovem se contraírem em um sorriso semelhante ao seu. Ela não teve medo, nem mesmo quando foi surpreendida por mãos que bloqueavam seus olhos. Conhecia aquele toque e o cheiro de relva que sempre sentia quando se aproximava demais dele. Sorriu, desvencilhou-se das mãos fortes e arremessou-se para os braços de seu amado. Percebeu que ele também estava mascarado e riu da crença tola dos dois.
- É só pra garantir que ninguém vai nos reconhecer. - ele se explicou, dando de ombros, um tanto sem jeito. - Está pronta pra ir?
- Desde o minuto que você propôs. - ela concordou, rendendo-se ao beijo que, por tantas, vezes havia roubado seu sossego ao longo daquelas intermináveis semanas. Beijaram-se longamente, depois cruzaram as mãos e puseram-se a caminhar pela estrada, iniciando a maior aventura de suas vidas.

Fugiram sem olhar para trás ou temer qualquer coisa. Não ouviram os sussurros proferidos pelas bocas vazias daqueles que vagavam entre lanternas de abóbora, nem as risadas amargas das bruxas que faziam sua dança perigosa à luz do luar. Não ouviram o uivos cheios de lamento do lobisomem, nem o piado agourento da coruja que prenunciava tempos sombrios.

Quando eles desapareceram para nunca mais serem vistos, todos afirmaram que os dois haviam se perdido entre as criaturas da noite de Hallowe’em. Choraram seus mortos, lamentaram pela tolice juvenil e nunca mais falaram sobre o trágico desfecho daquele  amor proibido.

Muitos anos depois, porém, enquanto ela assava os barmbracks para as filhas e ele preparava as lanternas de abóbora para iluminar o caminho dos que cruzavam o véu entre os mundos, ambos concordavam que a melhor decisão para fugir dos vivos havia sido a de atrever-se a caminhar entre os mortos.