segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Feliz Ano Velho




Todo mundo que conhecia Priscila, sabia que ela nunca ia a festas de Ano Novo. Não que ela fosse antissocial. Muito pelo contrário. Priscila era foliã assídua nas festas de Carnaval, São João e Halloween. Adorava os almoços em família da Páscoa, as viagens com amigos nos feriados e circulava com empolgação entre as tardes de verão na praia e os queijos e vinhos em noites de inverno. Ajudava a organizar happy hours, open houses e chás de bebês. Montava a árvore de Natal, enfeitava a casa, participava de um sem fim de amigos-ocultos de final ano e era presença garantida na ceia da noite Natal. Mas quando as ruas se enchiam de gente vestida de branco e os fogos de artifício estouravam anunciando a chegada do novo ano, Priscila não era mais vista por ninguém. 

Tinha sempre uma desculpa perfeita para a turma que insistia em tentar tê-la por perto na data: uma viagem de última hora com amigos de infância, uma estadia num hotel isolado, um mal-estar arrebatador na noite de réveillon e várias outras respostas perfeitamente convincentes para justificar seu sumiço ou as mensagens não respondidas. Com o passar dos anos, a ausência recorrente deixou de despertar curiosidade e Priscila passou a desaparecer sem maiores explicações. Voltava sempre a tempo de desmontar a árvore de Natal no Dia de Reis.

Quem convivia com Priscila por tempo suficiente, conhecia o real motivo para os sumiços com data marcada: um coração partido às vésperas do Reveillon. As poucas palavras que eram ditas sobre o assunto, afirmavam que houve choro e muito drama, poucas horas antes de um importante anúncio que estava previsto para acontecer na noite de Ano Novo. Desde então, Priscila nunca mais comemorou a data e seus desaparecimentos chegavam a ser um alívio para os que tinham presenciado o triste episódio de tantos anos atrás.

Quando Priscila chegou em casa, numa terça-feira fria de agosto, precisou dar dois passos para trás e conferir se não havia entrado no apartamento errado. A mesa de jantar, quase sempre ocupada pelo notebook, pilhas de revistas e correspondências antigas, estava coberta por uma toalha branca e preparada para o que deveria ser algum tipo de jantar especial. Havia balões brancos espalhados por toda a sala e pedacinhos de papel prateado forravam a mesa de centro, onde uma garrafa de espumante descansava dentro de um balde de gelo e duas taças de cristal esperavam por um brinde. De algum lugar do ambiente ecoava as notas suaves de uma música que ela conhecida perfeitamente, apesar de todos os esforços que havia feito para esquecê-la.

Priscila levou tanto tempo absorvendo cada um daqueles detalhes, que demorou a perceber que não estava sozinha na casa. Sentado no sofá, com as mãos cruzadas em um gesto de nervosismo, ele a observava com aqueles olhos escuros bem abertos e cheios de ansiedade. Colocou-se de pé quando ela não esboçou nenhuma reação, mas não se a arriscou a fazer nenhum outro movimento brusco. Ela forçou-se a piscar para ter certeza de que não estava sendo enganada por nenhum truque da sua mente. Mas ele continuou ali, imóvel. Parecia exatamente o mesmo daquela noite de muitos anos atrás, com exceção de algumas marcas de expressão e do cansaço evidente naqueles olhos escuros. Percebeu, sentindo a alma pesar um pouco menos, que ela não havia sido a única a enfrentar anos difíceis.

Quando ele finalmente se atreveu a quebrar o silêncio, a voz rouca da qual ela ainda se lembrava, com dolorosa precisão, falou de arrependimento e remorso. Contou sobre a sequência de decisões erradas que havia tomado, das tentativas de recomeço frustradas, da vergonha infantil de voltar atrás e da sensação de vida desperdiçada que passou a experimentar nos últimos meses. Falou por tempo suficiente para ela se esquecer dos anos que haviam se estendido entre eles, até que um flash de memória trouxe de volta as últimas palavras daquela conversa definitiva: entre soluços e lágrimas, ela afirmou que ele se arrependeria e voltaria antes que o ano novo chegasse. De repente, toda aquela decoração fez sentido.

- Você não vai falar nada? – a pergunta a arrancou dos seus devaneios. Ele havia tomado coragem e se aproximou o suficiente para desnortear os sentidos dela. Aqueles olhos escuros continuavam a encará-la fixamente, numa súplica silenciosa por qualquer resposta. Ela se lembrou de todas as palavras duras que havia ensaiado na frente do espelho e dos discursos raivosos que repassara por tantas vezes com a amiga nas noites de fossa e vinho. Mas não conseguiu começar nenhum deles. Sentindo o peso de uma tristeza carregada por tantos anos escorregar de suas costas, rendeu-se ao magnetismo que o tempo não foi capaz de anular, arremessou-se nos braços dele, fechou os olhos e pronunciou as únicas palavras que vieram à sua cabeça depois que o perfume dele anestesiou sua racionalidade.

- Feliz Ano Novo.