quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Parada de Produção


    Pela primeira vez em centenas e centenas de anos, as renas Rudolph, Dasher, Dancer, Prancer, Vixen, Comet, Cupid, Donner, Blitzen e Bernard não saíram do calor do celeiro na noite do dia vinte e quatro de dezembro. O trenó continuou no mesmo lugar, coberto pela lona escura que o protegia da destruidora umidade da Lapônia. 

    Os duendes também estavam de folga naquela noite, aproveitando o abençoado calor da lareira. No outro lado da propriedade, as luzes do galpão estavam apagadas e não saía fumaça de nenhuma das chaminés. Não havia o ronco dos motores das máquinas, nem o rugir da fornalha que mantinha tudo em funcionamento. Naquele atípico dois mil e vinte, não houve produção na fábrica do Papai Noel.

    O planejamento para mais um Natal foi feito com a mesma precisão de sempre, mas assim que as primeiras cartas das crianças boazinhas começaram a chegar, todos foram arrebatados pela surpresa. Até mesmo Noel, acostumado aos pedidos mais peculiares, ficou sem reação: não havia bonecas, carrinhos ou jogos nos bilhetinhos de escritos com caligrafias redondas e desajeitadas. A maioria das correspondências pedia pelo retorno das brincadeiras ao ar livre, dos passeios nas praças, do pique-pega na hora do recreio, das festas de aniversário cercadas de amigos, dos abraços dos avós e das viagens de férias. Algumas, ainda mais emotivas, imploravam ao bom velhinho pela volta de entes queridos que já não podiam mais ser visitados, comida nas geladeiras repentinamente vazias e a liberdade dos sorrisos, agora escondidos atrás das camadas protetoras das máscaras. Alguns corações, particularmente esperançosos, pediam pela vacina que poderia dar fim ao vírus e a toda tristeza trazida por ele.

    Papai Noel e os duendes bem que tentaram, mas não conseguiram encontrar em seu estoque nada que pudesse servir de matéria-prima para aqueles pedidos. Despacharam as renas e a Mamãe Noel em uma expedição especial de busca, que não teve êxito. Quando finalmente se convenceram de que não havia nada a fazer, trancaram as portas do grande galpão e deram férias coletivas aos incansáveis trabalhadores. Na noite do dia vinte e quatro de dezembro, acalentados pelo fogo e alimentados pela ceia farta, permitiram-se fazer os próprios desejos e mentalizaram, com toda a força de seus corações, para que no próximo ano as cartinhas trouxessem pedidos capazes de fazer a grande fábrica de Natal funcionar outra vez a pleno vapor. 


sábado, 30 de maio de 2020

Crônica sobre a Quarentena

Hoje é o meu septuagésimo quarto dia de isolamento social. Parece o início do discurso de um viciado em processo de recuperação, mas é só uma contagem para não perder de vez a noção do tempo. Que ano, senhoras e senhores, que ano!

Vamos nos lembrar de dois mil e vinte como o ano em que o mundo parou. Parou por um motivo triste, que derrubou por terra a convicção de que tínhamos tudo sob controle. A gente não fazia ideia do que estava por vir quando se vestiu de branco para despachar dois mil e dezenove à meia noite de 01.01.2020. Eu ainda me pego tentando lembrar se posso ter me enrolado na contagem das ondas que pulei, se estourei a cidra no momento errado ou se uma escolha infeliz da cor da calcinha pode ter bagunçado o ritual da virada e estragado o ano novo logo na largada. Como a minha memória é um desastre, provavelmente vou carregar essas dúvidas pro resto da vida.

Descobrimos o que nos esperava logo nos primeiros meses e agora estamos (sobre)vivendo dias que serão narrados em livros que nossos bisnetos vão ler. Vocês já pararam pra pensar que esse é um novo marco na história da humanidade? É uma constatação que às vezes me leva a umas reflexões bem profundas, mas na maioria do tempo só me desperta uma mágoa: ninguém que veio antes da gente avisou que viver um momento histórico ia dar tanta dor de cabeça.

Não podemos deixar de reconhecer que a possibilidade de fazer o isolamento social é um privilégio e a gratidão por nos mantermos saudáveis deve ser perene. Mas a insatisfação é inerente da natureza humana e, quase três meses depois do início do confinamento, a paciência com essa rotina cheia de restrições e álcool em gel já começa a chegar no limite. A gente vem tentando improvisar da melhor forma possível, mas em alguns momentos a emenda acaba ficando pior que o soneto.

A começar por esse “novo” meio que as pessoas arranjaram pra se encontrar em tempos de isolamento social. A primeira pergunta é: quem decidiu que a chamada de vídeo em grupo seria uma ideia incrível? Na minha opinião, a experiência de conversar com pessoas que não estão olhando nos meus olhos é bem estressante.

Quando o assunto é trabalho, a gente respira fundo e vai. Todo mundo que participa de reuniões virtuais já aprendeu a abstrair os sons de fundo: a televisão alta, o barulho das panelas na cozinha, a gritaria das crianças ou cachorro latindo na hora errada. As falhas técnicas também já viraram rotina: nenhuma reunião é completa se alguém não perder a conexão no meio do assunto, se nenhum áudio falhar de repente ou se não tiver um rosto congelado no meio da transmissão. Esse é o novo normal.

A coisa muda de figura quando enveredamos para os encontros não profissionais. Eu super respeito quem acha maravilhosa a experiência de passar horas falando com o telefone, mas pra mim não dá. Me atormenta não saber tem alguém olhando mesmo pra mim ou se todo mundo está prestando atenção na sua própria imagem. Atire a primeira pedra quem nunca passou uma chamada de vídeo quase inteira olhando só para o quadradinho no canto da tela.

Vocês já cantaram parabéns em um aniversário virtual? A experiência de bater palma e cantar sozinha pro meu telefone me pareceu tão constrangedora quanto aqueles momentos em que você confunde um estranho com um conhecido ou retribui um aceno que não era pra você. Apesar disso, eu considero o aniversário virtual um evento válido: começar um novo ciclo de vida bem no meio de uma pandemia que parece não ter fim deve ser uma droga. Levanta a mão quem fez aniversário no primeiro semestre, achou que o isolamento já teria acabado até o dia da festa e terminou a noite comendo o bolo sozinho. Nessas horas, o carinho das pessoas queridas ajuda a deixar o momento mais leve. 

Mas tem um tipo de evento virtual que eu espero que seja banido da rotina na vida pós-pandemia: os chopes. A ideia chega a parecer legal quando eu vejo, nas redes sociais, as fotos daquelas várias caixinhas com rostos sorridentes, mas a grande verdade é que o chope virtual demanda uma educação e uma civilidade que não é alcançada por todos os grupos sociais. Eu não me orgulho disso, mas confesso que me falta um pouco dessas duas qualidades. Você já tentou organizar um debate sensato depois de algumas rodadas de álcool? Na mesa de bar a regra é clara: fala mais quem fala mais alto. Os momentos de silêncio prolongados que fazem parte desse tipo de evento virtual também me deixam um pouco impaciente. Eu acabo sempre sendo a primeira a querer desligar depois de quinze minutos de conversa truncada ou quando fico enjoada de olhar minha própria imagem. 

Eu aceito os rótulos de “antipática” e “do contra” que andei recebendo depois de recusar alguns convites para esses empolgantes eventos sociais, mas venho por meio dessa crônica pedir para que vocês não duvidem do meu amor, nem das saudades que ando sentindo de todos. Quando tudo isso acabar, vamos nos abraçar e nos reunir para novas, longas, barulhentas e polêmicas conversas. Enquanto isso, a gente diminui o aperto do coração com ligações e mensagens de texto. Tá tudo bem mandar áudios também, desde que eles não tenham a duração de um podcast.

Fiquem bem, fiquem em casa e tentem não enlouquecer.