Aquele
havia sido um dia absolutamente comum, mesmo assim ele sentia a opressão
crescer dentro do peito, como se alguma coisa estivesse sendo inflada
lá dentro. Desligou o computador no primeiro minuto após o expediente, recusou o convite para um monótono happy hour com os
colegas de trabalho e respirou o ar do fim da tarde com alívio, quando
finalmente cruzou as portas do edifício comercial onde deixava valiosas
horas de sua vida.
Escolheu
um caminho diferente para a casa naquele dia. Na verdade, escolheu o
caminho oposto. Tomou o primeiro ônibus que o afastaria do tumultuado
centro comercial e abandonou o coletivo na primeira parada que lhe
permitisse ver o mar. Era inverno, mas o glorioso dia que chegava ao fim
fazia da estreita orla um bom lugar para se estar àquela hora.
Caminhou
sem pressa pela calçada de piso cinzento, desviando ocasionalmente de
ciclistas ou cruzando olhares despreocupados com pedestres que
observavam, com ar intrigado, suas roupas sociais. No horizonte, o sol
baixava e manchava os céu com as cores suaves da estação. Percorreu toda
a orla com uma caminhada tranquila e só parou quando chegou ao velho
deck de madeira que se lançava em direção ao mar. Sentiu-se grato por
não haver nenhum casal de namorados ou grupos de adolescentes
dividindo cigarros baratos àquela hora. Deixou o ar escapar pelos
pulmões, tirou os sapatos, dobrou a calça social, sentou-se na madeira
molhada do deck e mergulhou as pernas na água do mar. A maré estava alta
e a água gelada engoliu suas canelas quase por inteiro. Lançou um olhar cansado na direção do mar escuro à sua frente e quase se engasgou com o grito que fez força para segurar.
Uma
cabeça boiava na água, poucos metros adiante. Ficou imóvel por tempo
suficiente para gelar o estômago dele, então se mexeu e fez submergir um
pescoço, ombros e um par de braços que se agitavam com movimentos
suaves sobre a as marolas da maré tranquila.
- Eu
assustei você? Desculpe! - uma voz feminina perguntou, num tom
aveludado que desacelerou imediatamente as batidas do coração dele.
Contra a luz do fim do dia quase não dava para ver os detalhes da mulher
que se movia com suavidade na água, mas ele teve certeza absoluta de
que ela era deslumbrante.
- Não, você só me pegou desprevenido.
- ele respondeu, tentando parecer mais relaxado do que realmente
estava. - Não esperava ver ninguém nadando por aqui a essa hora. A água
não está gelada demais?
Ela levou um tempo para responder, como se nunca tivesse reparado nisso antes.
- Acho que já estou acostumada.
- Você costuma nadar sempre por aqui? - ele perguntou, sentindo-se um perfeito idiota no momento em que proferiu a última palavra.
- Só
quando preciso espairecer um pouco. - ela retrucou, sem parecer ter
reparado no clichê lançado pelo homem cansado sentado no deck. Ela podia
perceber que ele estava muito cansado apenas pelo som da sua voz. Era
bastante boa nisso.
- Teve um dia difícil? - ele perguntou, sentindo uma empatia imediata pela nadadora desconhecida.
Ela respondeu à pergunta com uma interjeição que sugeria que o dia havia sido realmente difícil e pôs-se a tagarelar com sua voz aveludada como se eles fossem velhos amigos. Enquanto
nadava de um lado para o outro da água gelada, ela explicou que
sentia-se particularmente infeliz naquele dia, pois havia concluído que jamais
seria realmente aceita no lugar de onde vinha.
-
Por que você não sabe cantar? - ele repetiu, quando a nadadora explicou
o motivo de sua rejeição. Sentiu vontade de rir, mas nada no tom de voz
dela sugeriu que aquilo fosse uma piada.
-
É algo muito valorizado no lugar de onde eu venho. - ela respondeu com
firmeza. Ele pensou em perguntar de onde ela vinha, mas uma agitação
repentina na água à sua frente dispersou seus pensamentos. Em um piscar
de olhos, ela mergulhou na água escura e ressurgiu dali a poucos
segundos, debruçando-se sobre o deck. Metade do corpo permaneceu na
água, mas a metade que submergiu atraiu seu olhar de forma magnética,
apesar de todos os esforços que ele fez para não parecer um boçal.
Cabelos longos e escuros contornavam um rosto pálido e olhos brilhantes,
que pareciam cintilar contra as sombras lançadas pelo sol poente. Os
seios fartos, apertados entre os braços que se apoiavam no deck,
avultavam-se de forma tentadora e ele desejou com um ardor quase
infantil que um último raio de sol surgisse de lugar nenhum para lançar
luz adequada àquele quadro.
-
E você? - ela assumiu a conversa, quando percebeu que ele parecia
distraído demais para continuar o assunto. - Do que está tentando fugir?
-
De tudo. - ele respondeu, antes que pudesse processar as próprias
palavras. Aqueles olhos brilhantes continuavam a observá-lo com atenção e
ele pôs-se a falar como nunca havia falado com ninguém. Contou que
sentia-se exausto por ser apenas mais um na multidão e como a vida
tranquila, o emprego estável, os amigos agradáveis, os relacionamentos
mornos e a estabilidade financeira às vezes lhe pareciam um prêmio de
consolação para aplacar a sensação de que a vida passava diante de seus
olhos sem que ele realmente estivesse fazendo parte dela.
-
Isso me parece tão triste quanto não se sentir parte de lugar algum. -
ela respondeu, quando ele finalmente pareceu ter sido esvaziado de suas inquietações. Pelo tempo que veio a
seguir eles debateram sobre como seria a vida de cada um se eles
experimentassem a aflição do outro. Ela desejou ser mais uma na multidão
ao invés de ser simplesmente conhecida como aquela que não consegue
fazer o que todos os fazem. Ele especulou que talvez não fosse tão ruim
se destacar na multidão, mesmo que fosse por não se encaixar em padrões
sociais considerados aceitáveis. Discutiram, discordaram, riram e
divagaram sobre as coisas mais improváveis e fascinantes, enquanto a lua
cheia subia no céu e forrava o mar com seu tapete cintilante. Descobriram
rapidamente que teriam assunto para a noite inteira, mas quando ela
retornou de um dos seus breves mergulhos e apoiou-se novamente no deck,
não trazia mais no rosto o semblante relaxado do início da conversa.
-
Eu preciso ir embora. - ela anunciou. - Está ficando tarde.
As palavras o trouxeram de volta
ao mundo real com um solavanco. Ele olhou a hora no relógio e
espantou-se em ver como as horas tinham passado rápido.
-
Uau, o tempo voou! Não sei como você conseguiu ficar
até agora aí dentro sem congelar. Precisa de ajuda para sair?
Ela meneou a cabeça com firmeza e ele pareceu genuinamente confuso.
-
Você precisa ir embora, não precisa? Ou pretende ir para casa nadando? -
abriu um sorriso para ressaltar o gracejo contido na pergunta, mas
fechou assim que ela acenou positivamente. - Você pretende?
-
É o jeito mais fácil. - ela limitou-se a responder, dando de ombros com
um movimento gracioso. - E acho que não sei chegar lá de outra forma.
-
Onde você mora? - ela finalmente perguntou. Em resposta, observou-a
voltar o corpo na direção do mar e apontar para o horizonte. Imaginou
que ela estivesse se referindo à cidade do outro lado da baía.
-
Você tem certeza de que não quer tentar outro caminho? - ele perguntou,
sentindo-se particularmente estranho por estar tendo aquele tipo de
discussão. Quantos quilômetros de mar separavam as duas cidades? Uns
trinta? Quarenta? - Podemos ir juntos, se você se sentir mais segura. E
podemos ir conversando também, para ajudar o tempo a passar.
-
Esse é o caminho mais rápido. - ela insistiu, mas percebeu a expressão
triste que tomou o rosto do homem cansado e completou. - Mas vocês pode
vir comigo. Vou me sentir mais segura. E vai ser bom conversar mais.
Ele
piscou, claramente confuso com a oferta, mas já era tarde demais para o
seu bom senso. A ideia de deixar aquela mulher partir, por mais
estranha que fossem as circunstâncias, estava fora de cogitação. Ele
tinha passado sua vida inteira fazendo apenas o que era razoável,
aceitável e racional. E o que havia conseguido com tudo aquilo?
-
Então eu vou com você. - anunciou, determinado. Pela primeira vez, em
muitos anos, sentiu a liberdade trazida por uma decisão baseada
simplesmente na sua vontade. Seu lado racional dizia que ele não deveria
entrar no mar gelado no meio da noite, sua razão dizia que não fazia
nenhum sentido cogitar a ideia de cruzar aquela baía a nado e o
aceitável clamava para que ele não se juntasse àquela desconhecida. Mas
ele havia se tornado repentinamente surdo e sentia-se incrivelmente
leve.
- Mesmo? - ela perguntou, abrindo o sorriso mais encantador que ele veria em toda a sua vida.
-
Mesmo. - ele respondeu, livrando-se das roupas que atrapalhariam seus
movimentos. - Mas precisamos ir devagar. E talvez eu tenha que parar
para descansar um pouco às vezes. Você se importa?
-
Claro que não! - ela respondeu, desnorteando definitivamente os
sentidos dele com a sua felicidade. Ela não podia acreditar que
finalmente havia encontrado alguém que não se importava com o seu canto.
Ele
pulou na água como as crianças de nove anos costumam fazer. Espirrou
água, reclamou da temperatura congelante e os dois riram daquele momento
até ela anunciar que era hora de partir. Avançaram pelo horizonte
escuro, ele batendo pés e braços com movimentos desajeitados, enquanto
ela movia-se com movimentos graciosos, a cauda cintilando vez ou outra
quando encontrava a superfície e a luz da lua.
Ele
não apareceu no trabalho no dia seguinte. Também não foi para casa. E
nem atendeu às suas ligações. Suas roupas e documentos foram
encontrados, abandonados na beira da praia. A polícia foi envolvida, uma
investigação foi aberta e uma onda de comoção se formou. Enquanto o
procuravam, fotos suas circularam por redes sociais, acompanhadas de
pedidos de informação sobre seu paradeiro. A imprensa da cidade se
agitou com o misterioso desaparecimento. Houve declarações emocionadas
de todo tipo de gente, que fazia questão de dizer, com vozes embargadas
pela emoção, que ele era uma das pessoas mais especiais que elas já
haviam conhecido. Todas afirmavam que ele era único e que o mundo seria
um lugar mais triste depois daquele desaparecimento repentino.
Quando
ela retornou de seu longo passeio, arrastando o corpo sem vida de um dos
moradores do mundo lá de cima, se tornou a figura mais popular da
colônia. Em pouco minutos a notícia se espalhou: a sereia que não sabia
cantar tinha conseguido atrair um humano para os seus domínios. Ela
recebeu aplausos, cumprimentos e congratulações, enquanto arrastava sua
presa para longe dos olhares curiosos. Quando finalmente se viu sozinha,
ela abraçou o corpo do homem cansado e chorou de tristeza e remorso. Ela havia prometido mostrar a ele sua casa e cada um dos detalhes que amava,
então tomou-o pelas mãos e mergulhou rumo aos seus domínios sem olhar para
trás. Não soube dizer em que momento o havia perdido.
Ela chorou por todo aquele dia e
por outros vários que vieram a seguir, enquanto as notícias sobre seu
feito se espalhavam pelos sete mares.
Ele
foi encontrado numa praia distante, muitos dias depois de boiar sem
rumo pelo oceano, enquanto uma cidade inteira se mobilizava na busca por
seu estimado morador.
15/09/2016
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