Ele decidiu que aquela linda tarde de verão seria perfeita para testemunhar o fim da sua vida. Escolheu o imponente edifício comercial do escritório onde trabalhava como palco para seu grand finale. Naquele que seria seu
derradeiro dia, despediu-se dos colegas com um displicente “até breve”, tomou o
caminho das escadas e dirigiu-se, sem pressa, para o último andar do edifício. Com uma serenidade inabalável, pôs-se a subir os degraus de concreto e repassou seu plano dramaticamente
simples: subiria até o último andar, pularia lá de cima e daria fim à própria vida. Sem despedidas, nem cartas, nem avisos.
Atingiu o telhado sem cruzar com nenhuma
viva alma. Sabia que os poucos seguranças que guardavam o edifício estariam
distraídos àquela hora, ocupados em garantir uma saída tranquila para o enorme
fluxo de pessoas que esvaziava o prédio. Sorriu ao concluir que teria uma grande platéia e abriu a última porta corta fogo que o separava do topo do
arranha-céu.
A intensa luz do fim da tarde atingiu seus
olhos e ele precisou piscar algumas vezes para se acostumar à
repentina claridade. Sentiu-se tentado a dedicar alguns minutos de atenção ao
sol que começava a se pôr no horizonte, mas sabia que não deveria se distrair. Com passos firmes, caminhou
na direção do parapeito e pôs-se a procurar o apoio que precisava para elevar o corpo acima da contenção.
- Ei! – uma voz feminina interrompeu seus
movimentos, trazendo-o bruscamente de volta à realidade. A dona da voz estava
sentada no parapeito, apenas alguns metros adiante. – O que você está
fazendo?
Contra a luz alaranjada do
pôr-do-sol, não era possível ver detalhes do rosto que quebrou sua concentração, mas o tom da voz transbordava irritação.
- Eu ia pular. – ele retrucou, com simplicidade.
- É, eu percebi que você ia pular. – a silhueta rebateu, com uma nota de sarcasmo. – Mas
eu cheguei primeiro. Você meio que está me atrapalhando.
Ele precisou de alguns segundos para se
recuperar da surpresa causada pelo anúncio. Abriu a
boca duas vezes, antes de finalmente conseguir articular uma resposta.
- Eu posso pular na sua frente? Tenho motivos
mais fortes para estar aqui.
A mulher sentada no parapeito fez um movimento
perigosamente brusco e, por um breve segundo, ele achou que teria seu
grande momento roubado. O que ela fez, no entanto, foi recolocar os pés de volta à segurança do telhado e encará-lo através da estonteante luz do fim
de tarde. Ele ainda não era capaz de ver os detalhes do rosto, mas entendeu que o grandioso plano ao qual se dedicara com tanto empenho havia sido arruinado.
- Me prove. – ela limitou-se a responder.
- O quê?
- Vamos apostar pra ver quem tem o motivo mais
forte. Você me conta o seu e eu te conto o meu. Quem tiver o melhor argumento, ganha
o direito de pular. Quem perder, vai embora e escolhe outro dia. O que acha?
O desafio era tão absurdo quanto a própria
situação, por isso pareceu perfeitamente razoável naquele momento.
- Tudo bem. – ele concordou, dando
de ombros. – Mas, antes de começarmos, você desce daí. Precisamos ficar em
condições iguais.
A mulher deixou escapar um gargalhada, antes de
aceitar a mão que lhe foi estendida. A risada era cristalina, espontânea e contagiante.
- Então,
você começa. – ela anunciou, quando os dois se apoiaram no guarda-corpo. – Me convença de que merece mesmo pular antes de mim.
Por breves segundos, ele se arrependeu da
aposta. Não fazia o menor sentido falar sobre uma decisão tão definitiva para
uma perfeita estranha. Cogitou dar meia volta e desaparecer pelas escadas, mas as palavras vieram antes que pudesse religar os implacáveis filtros de sua mente: falou sobre a opressora sensação de
solidão que o perseguia, sobre como nunca havia realmente encontrado seu lugar naquele mundo, sobre seus esforços em se encaixar em padrões inalcançáveis e atingir expectativas que
jamais foram efetivamente suas. Falou sobre sonhos abandonados, sobre a
reciprocidade que nunca conheceu e sobre como aquele salto no vazio lhe parecia
a única opção possível para se livrar de amarras tão fortes e sufocantes.
- Agora é sua vez. – ele anunciou, quando sentiu-se
vazio de novas palavras. Não soube precisar por quanto tempo falou, mas percebeu
que o sol havia desaparecido no horizonte e não se lembrava de já ter visto um
início de noite tão glorioso como aquele.
Ela respirou fundo e balbuciou
algumas palavras inseguras, antes que finalmente se entregasse à libertadora
sensação de falar. Contou sobre sua constante inquietação e sobre a
desesperadora certeza de que havia desperdiçado cada um dos seus dias tentando
vivê-los intensamente. Falou sobre seu impulsivo desejo de liberdade e de
como ele a impedia de se conectar às pessoas. Falou sobre o medo incontrolável de
jamais fazer a diferença na vida de alguém, sobre as lições dolorosas que havia
aprendido por causa disso e sobre como achava que poderia encontrar libertação
naquele salto em direção ao fim. Deixou escapar um suspiro exausto quando
não encontrou nenhuma outra palavra a ser dita.
Àquela altura, uma estonteante
lua cheia já começava a subir no horizonte e a cidade abaixo deles cintilava de forma artificial. A noite recém chegada trouxe uma brisa suave, que
substituiu com benevolência o calor das horas anteriores. Acima
deles, as pequenas luzes das antenas se acenderam e ambos perceberam
que precisavam dizer alguma coisa.
- Você não pode pular. – ele anunciou primeiro, com o
tom de voz repleto de convicção. Não conseguia entender como alguém tão livre podia pensar em colocar fim a uma vida tão empolgante.
– Não, antes de mudar a sua opinião sobre o guacamole.
Ela foi incapaz de manter a seriedade e sua
risada contagiante despedaçou a tensão daquele momento.
- Eu odeio guacamole! – foi tudo o que conseguiu responder. Mesmo em meio à escuridão, dava pra perceber que ainda
sorria.
- Você odeia as lembranças que uma noite ruim
em um restaurante mexicano te trouxeram. Vamos combinar uma coisa? Eu te levo pra comer um guacamole
de verdade, no melhor restaurante da cidade. Se, mesmo depois disso, você ainda odiar, pode pular na minha frente. Combinado?
- Combinado. – ela respondeu, erguendo as mãos
em sinal de rendição. Sentiu que precisava ganhar tempo para que fosse capaz de
convencer alguém tão cheio de potencial a desistir de dar fim à própria vida. – Com uma condição: que você dê uma chance ao karaokê.
- O quê? Não! Eu detesto karaokê! – ele protestou,
incapaz de disfarçar a diversão que o desafio lhe havia despertado.
- Você mesmo
disse que nunca foi a nenhum! Não dá pra detestar alguma coisa, só porque seu
pai detesta. Já está decidido: eu vou te levar pra conhecer o karaokê mais
animado da cidade. Se você realmente não for capaz de se divertir depois de cantar e desafinar, sem se preocupar com a opinião dos outros, eu
te deixo pular na minha frente. Fechado?
- Fechado. – ele concordou, aceitando a mão estendida em sua direção para selar o pacto. – Vamos
começar com o guacamole? O restaurante que eu falei não fica muito longe daqui.
- Tá certo. – ela concordou. – Será que a gente
consegue umas doses de tequila por lá? Não tem nada melhor do que tequila para
despertar o cantor que existe escondido em cada um de nós.
Os dois se afastaram do parapeito sem olhar
para trás e caminharam pela escuridão quase completa do telhado, com passos cuidadosos
de quem não quer correr o risco de se machucar. Enquanto desciam os longos lances
de degraus que os separavam do andar térreo, ele descobriu que o sorriso dela
era tão encantador quanto o som de sua risada e ela percebeu que ele tinha um
olhar tão envolvente quanto sua voz.
Naquela noite, ela descobriu que realmente não
havia experimentado o verdadeira guacamole e ele concluiu que um karaokê era um
pouco mais do que um amontado de cantores fracassados tentando inflar o próprio ego. Na semana seguinte, ela descobriu que comida tailandesa não era tão
ruim quanto havia imaginado e ele se deu conta de que era um excelente jogador
de sinuca. Dois meses depois, após uma noite de bebida, música e um longo
beijo de boa noite, os dois concordaram que ainda havia muitas coisas que precisavam
experimentar juntos, antes de decidir quem pularia primeiro.