segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Rompimento

Quando ela decidiu que finalmente era hora sair da vida dele, cruzou a porta da frente sem olhar para trás. Tinha certeza de que aquele momento chegaria, mesmo assim esperou até que se tornasse inadiável. Uma grande parte de si sabia, desde o início, que aquela era uma situação perdida. Mas a outra pequena parte era insistente e persuasiva, por isso ela decidiu ficar.

Contentava-se com a companhia distante e silenciosa dele, mesmo nos momentos em que a vontade de tocá-lo era tão intensa que quase conseguia lhe causar dor. Escutava com atenção enquanto ele falava sobre seu dia, mesmo sabendo que as palavras não eram realmente destinadas a ela. Passava horas a fio assistindo filmes clássicos ou ouvindo músicas inteiramente desconhecidas a ela, só pelo prazer de sentir-se conectada a ele.

Ela sabia que estava vivendo uma grande ilusão e, a cada novo nascer do sol, percebia que não conseguiria sustentá-la por muito mais tempo. Já não podia tolerar a idéia de não ser a dona dos pensamentos que o mantinham acordados até mais tarde em algumas noites, nem o motivo dos sorrisos que às vezes ele deixava escapar enquanto mexia no celular. Sofria lentamente quando ele não dormia em casa ou quando chegava tarde da noite com um ar sonhador e um perfume desconhecido exalando de suas roupas.

Convenceu-se de que havia chegado a hora de partir numa noite de lua cheia particularmente deslumbrante, quando a verdade tornou-se evidente demais para ser ignorada. Havia música, flores e um cheiro de comida fresca na casa. Havia roupa de cama nova, toalhas extras, velas acesas e a certeza de que nada daquilo havia sido preparado para ela.

Quando ela decidiu que finalmente era hora sair da vida dele, cruzou a porta da frente sem olhar para trás. Adoraria ter derramado lágrimas que ajudassem a amenizar o peso em seu coração, mas sabia que chorar não era mais um luxo ao qual podia se permitir.

Afastou-se da casa com passos tranquilos e seguiu em silêncio pela alameda florida, perdida entre seus pensamentos e a tristeza contra a qual havia lutado tão bravamente até aquele momento. Colheu algumas flores no caminho, despediu-se das estrelas e enveredou por um complexo emaranhado de ruazinhas até finalmente atingir sua última parada. 

Os grandes portões do cemitério da cidade estavam trancados àquela hora da noite, mas ela conseguiu cruzá-los sem nenhuma dificuldade. Encontrou sua lápide depois de uma curta caminhada pelos jardins desertos, pousou os cravos sobre o anjo tristonho que guardava seu sono eterno e entregou-se ao inevitável. No final das contas, seria mais fácil parar de resistir à morte do que continuar alimentando ilusões sobre aquele amor que sempre esteve predestinado a nunca acontecer.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Prioridade


Ele decidiu que aquela linda tarde de verão seria perfeita para testemunhar o fim da sua vida. Escolheu o imponente edifício comercial do escritório onde trabalhava como palco para seu grand finale. Naquele que seria seu derradeiro dia, despediu-se dos colegas com um displicente “até breve”, tomou o caminho das escadas e dirigiu-se, sem pressa, para o último andar do edifício. Com uma serenidade inabalável, pôs-se a subir os degraus de concreto e repassou seu plano dramaticamente simples: subiria até o último andar, pularia lá de cima e daria fim à própria vida. Sem despedidas, nem cartas, nem avisos.

Atingiu o telhado sem cruzar com nenhuma viva alma. Sabia que os poucos seguranças que guardavam o edifício estariam distraídos àquela hora, ocupados em garantir uma saída tranquila para o enorme fluxo de pessoas que esvaziava o prédio. Sorriu ao concluir que teria uma grande platéia e abriu a última porta corta fogo que o separava do topo do arranha-céu.

A intensa luz do fim da tarde atingiu seus olhos  e ele precisou piscar algumas vezes para se acostumar à repentina claridade. Sentiu-se tentado a dedicar alguns minutos de atenção ao sol que começava a se pôr no horizonte, mas sabia que não deveria se distrair. Com passos firmes, caminhou na direção do parapeito e pôs-se a procurar o apoio que precisava para elevar o corpo acima da contenção.

- Ei! – uma voz feminina interrompeu seus movimentos, trazendo-o bruscamente de volta à realidade. A dona da voz estava sentada no parapeito, apenas alguns metros adiante. – O que você está fazendo?

Contra a luz alaranjada do pôr-do-sol, não era possível ver detalhes do rosto que quebrou sua concentração, mas o tom da voz transbordava irritação. 

- Eu ia pular. – ele retrucou, com simplicidade.

- É, eu percebi que você ia pular. – a silhueta rebateu, com uma nota de sarcasmo. – Mas eu cheguei primeiro. Você meio que está me atrapalhando.

Ele precisou de alguns segundos para se recuperar da surpresa causada pelo anúncio. Abriu a boca duas vezes, antes de finalmente conseguir articular uma resposta.

- Eu posso pular na sua frente? Tenho motivos mais fortes para estar aqui.

A mulher sentada no parapeito fez um movimento perigosamente brusco e, por um breve segundo, ele achou que teria seu grande momento roubado. O que ela fez, no entanto, foi recolocar os pés  de volta à segurança do telhado e encará-lo através da estonteante luz do fim de tarde. Ele ainda não era capaz de ver os detalhes do rosto, mas entendeu que o grandioso plano ao qual se dedicara com tanto empenho havia sido arruinado.

- Me prove. – ela limitou-se a responder.

- O quê?

- Vamos apostar pra ver quem tem o motivo mais forte. Você me conta o seu e eu te conto o meu. Quem tiver o melhor argumento, ganha o direito de pular. Quem perder, vai embora e escolhe outro dia. O que acha?

O desafio era tão absurdo quanto a própria situação, por isso pareceu perfeitamente razoável naquele momento.

- Tudo bem. – ele concordou, dando de ombros. – Mas, antes de começarmos, você desce daí. Precisamos ficar em condições iguais.

A mulher deixou escapar um gargalhada, antes de aceitar a mão que lhe foi estendida. A risada era cristalina, espontânea e contagiante.

- Então,  você começa. – ela anunciou, quando os dois se apoiaram no guarda-corpo. – Me convença de que merece mesmo pular antes de mim.

Por breves segundos, ele se arrependeu da aposta. Não fazia o menor sentido falar sobre uma decisão tão definitiva para uma perfeita estranha. Cogitou dar meia volta e desaparecer pelas escadas, mas as palavras vieram antes que pudesse religar os implacáveis filtros de sua mente: falou sobre a opressora sensação de solidão que o perseguia, sobre como nunca havia realmente encontrado seu lugar naquele mundo, sobre seus esforços em se encaixar em padrões inalcançáveis e atingir expectativas que jamais foram efetivamente suas. Falou sobre sonhos abandonados, sobre a reciprocidade que nunca conheceu e sobre como aquele salto no vazio lhe parecia a única opção possível para se livrar de amarras tão fortes e sufocantes.

- Agora é sua vez. – ele anunciou, quando sentiu-se vazio de novas palavras. Não soube precisar por quanto tempo falou, mas percebeu que o sol havia desaparecido no horizonte e não se lembrava de já ter visto um início de noite tão glorioso como aquele.

Ela respirou fundo e balbuciou algumas palavras inseguras, antes que finalmente se entregasse à libertadora sensação de falar. Contou sobre sua constante inquietação e sobre a desesperadora certeza de que havia desperdiçado cada um dos seus dias tentando vivê-los intensamente. Falou sobre seu impulsivo desejo de liberdade e de como ele a impedia de se conectar às pessoas. Falou sobre o medo incontrolável de jamais fazer a diferença na vida de alguém, sobre as lições dolorosas que havia aprendido por causa disso e sobre como achava que poderia encontrar libertação naquele salto em direção ao fim. Deixou escapar um suspiro exausto quando não encontrou nenhuma outra palavra a ser dita. 

Àquela altura, uma estonteante lua cheia já começava a subir no horizonte e a cidade abaixo deles cintilava de forma artificial. A noite recém chegada trouxe uma brisa suave, que substituiu com benevolência o calor das horas anteriores. Acima deles, as pequenas luzes das antenas se acenderam e ambos perceberam que precisavam dizer alguma coisa.

- Você não pode pular. – ele anunciou primeiro, com o tom de voz repleto de convicção. Não conseguia entender como alguém tão livre podia pensar em colocar fim a uma vida tão empolgante. – Não, antes de mudar a sua opinião sobre o guacamole.

Ela foi incapaz de manter a seriedade e sua risada contagiante despedaçou a tensão daquele momento.

- Eu odeio guacamole! – foi tudo o que conseguiu responder. Mesmo em meio à escuridão, dava pra perceber que ainda sorria.

- Você odeia as lembranças que uma noite ruim em um restaurante mexicano te trouxeram. Vamos combinar uma coisa? Eu te levo pra comer um guacamole de verdade, no melhor restaurante da cidade. Se, mesmo depois disso, você ainda odiar, pode pular na minha frente. Combinado?

- Combinado. – ela respondeu, erguendo as mãos em sinal de rendição. Sentiu que precisava ganhar tempo para que fosse capaz de convencer alguém tão cheio de potencial a desistir de dar fim à própria vida. – Com uma condição: que você dê uma chance ao karaokê.

- O quê? Não! Eu detesto karaokê! – ele protestou, incapaz de disfarçar a diversão que o desafio lhe havia despertado.

- Você mesmo disse que nunca foi a nenhum! Não dá pra detestar alguma coisa, só porque seu pai detesta. Já está decidido: eu vou te levar pra conhecer o karaokê mais animado da cidade. Se você realmente não for capaz de se divertir depois de cantar e desafinar, sem se preocupar com a opinião dos outros, eu te deixo pular na minha frente. Fechado?

- Fechado. – ele concordou, aceitando a mão estendida em sua direção para selar o pacto. – Vamos começar com o guacamole? O restaurante que eu falei não fica muito longe daqui.

- Tá certo. – ela concordou. – Será que a gente consegue umas doses de tequila por lá? Não tem nada melhor do que tequila para despertar o cantor que existe escondido em cada um de nós.

Os dois se afastaram do parapeito sem olhar para trás e caminharam pela escuridão quase completa do telhado, com passos cuidadosos de quem não quer correr o risco de se machucar. Enquanto desciam os longos lances de degraus que os separavam do andar térreo, ele descobriu que o sorriso dela era tão encantador quanto o som de sua risada e ela percebeu que ele tinha um olhar tão envolvente quanto sua voz.

Naquela noite, ela descobriu que realmente não havia experimentado o verdadeira guacamole e ele concluiu que um karaokê era um pouco mais do que um amontado de cantores fracassados tentando inflar o próprio ego. Na semana seguinte, ela descobriu que comida tailandesa não era tão ruim quanto havia imaginado e ele se deu conta de que era um excelente jogador de sinuca. Dois meses depois, após uma noite de bebida, música e um longo beijo de boa noite, os dois concordaram que ainda havia muitas coisas que precisavam experimentar juntos, antes de decidir quem pularia primeiro.