segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Sabotagem do Natal

Havia uma agitação nunca antes vista por aquelas bandas da Lapônia. Todos sabiam que a véspera de Natal era movimentada na fábrica do Papai Noel, mas naquele ano as coisas pareciam particularmente caóticas.

O bom velhinho, já vestido com seus trajes oficiais, assistia angustiado à movimentação nervosa de pessoas sérias e bem vestidas ao seu redor. Algumas falavam ao telefone, outras analisavam com expressões preocupadas as telas de seus smartphones e algumas outras se amontavam ao redor de monitores instalados sobre a grande mesa que no passado havia recebido jantares gostosos e sossegados.

- Noel. - uma voz masculina e eficiente o despertou de seus pensamentos. Uma mão estava estendida em sua direção e segurava um tablet que tinha a tela iluminada por um emaranhado de linhas e pontos coloridos e piscantes. - Esse é seu plano de voo revisado. Atualizamos suas paradas para começar pelos países que estão em horário de verão. Vai ser um trecho de viagem meio corrido e abafado, mas o pessoal da logística garantiu que serão poucas paradas. O time de marketing reduziu bastante sua atuação nessas regiões, já que por lá as pessoas não são super adeptas à tradição de meias penduradas nas lareiras. O gerente achou que isso descaracteriza um pouco sua marca e prejudica a identidade visual do projeto, por isso você vai dar uma passada bem rápida por lá, só pra não perder o market share.

Noel encarou o homem sem saber o que responder, depois lançou um pedido de socorro silencioso à Mamãe Noel. Ela deu de ombros, parecendo igualmente abatida. Sentia-se inútil desde que havia sido afastada de suas funções de preparar a comida para viagem do bom velhinho. Depois de analisar seu cardápio, a nutricionista da equipe de projeto classificou seus quitutes como demasiadamente ricos em carboidratos e açúcares. Ao invés dos biscoitos de gengibre e chocolate quente, Noel levaria em sua bagagem algumas barras proteicas e isotonicos. Sentados lado a lado nas velhas poltronas de descanso, eles observavam desolados o tumulto interminável do go live de Natal e  amarguravam o arrependimento por terem decidido contratar ajuda profissional.

A coisa toda começou uma cartinha fora de época. O remetente era um adulto preocupado com a onda crescente de crianças que deixava de acreditar em Papai Noel cada vez mais cedo. Com palavras motivadoras e boa vontade contagiante, o homem identificou-se como um coach e se ofereceu para uma visita à Lapônia e um bate papo sem compromisso para identificar oportunidades de melhoria. A família Noel ficou encantada com a perspectiva de ajuda. O homem era eloquente, carismático e ajudou Papai Noel a descobrir diversas falhas que certamente vinham contribuindo para sua perda de popularidade, além de convecê-lo a buscar ajuda profissional da melhor qualidade.

Três meses depois, o time do projeto "Noite Feliz" estava montado.

Houve muita discussão quando a equipe de engenharia decidiu rever a cadeia produtiva de brinquedos e sugeriu mudanças polêmicas, que levaram os duendes a cruzar os braços e iniciar uma greve. Felizmente o gerente de integração, juntamente com um Papai Noel bastante aborrecido, interviram a tempo e encontraram um meio termo para implementar as melhorias mais urgentes e atender às reinvindicações dos trabalhadores.

A equipe de marketing também causou um alvoroço quando sugeriu uma mudança na forma como as crianças vinham pedindo seus presentes: as cartinhas eram uma ferramenta de comunicação cara, lenta e sujeita a incontáveis riscos de extravio, por isso seriam substituídas por correspondência digital. Rapidamente formou-se uma força tarefa que seria responsável por ler e classificar toda a correspondência recebida, além de inputar os pedidos no sistema que alimentaria o planejamento de produção. Para garantir que não haveria gargalos, uma equipe de auditoria dedicou-se à tarefa de conferir quais crianças haviam sido realmente boazinhas como afirmavam. Definindo e aplicando métricas simples, foi possível excluir um enorme percentual de crianças mentirosas, pirracentas e preguiçosas, deixando apenas um grupo seleto de estudiosos, educados e obedientes. A equipe de logística complementou o trabalho, organizando trajetos eficientes que garantiriam redução de custos e agilidade nas entregas.

- Destacamos de azul as residências onde você deverá permanecer mais tempo. - uma mulher de gestos ansiosos o colocou pra fora de sua poltrona, conduzindo-o com movimentos enérgicos para o lado de fora da casa. - São casas de crianças influencers, que têm quantidades expressivas de seguidores no Youtube e Instagram. Uma visita caprichada pra essa turma vai colocar seu nome nos trend topics do twitter. É só fazer o de sempre: dá uma olhada na arruamação de Natal, confere pra gente se as lareiras ainda são mesmo relevantes na decoração, esbarra em alguma coisa pra fazer barulho e sai pela janela antes que te vejam. Moleza, né?

Papai Noel abriu a boca para tentar explicar que não era assim que as coisas funcionavam, mas a jovem ergueu um dedo intimidador e recomeçou a falar.

- Ah, pode ficar tranquilo que encontramos um workaround para tratar daquelas cartinhas fora do nosso padrão de qualidade que o senhor fez tanta questão de atender. Enviamos tudo por DHL para um centro de distribuição e, de lá, elas serão entregues por alguns terceiros vestidos exatamente como o senhor. Eles fizeram um treinamento on line e estão super aptos pra fazer suas crianças felizes.

Sorriu um sorriso formal de dentes perfeitos quando terminou de falar, exatamente no momento em que pararam do lado de fora da casa.

- Seu trenó está pronto! - uma terceira pessoa fez um anúncio empolgado, assumindo a conversa. Puxou Papai Noel para os jardins cobertos de neve e apontou na direção de um trenó que parecia ter saído de um filme futurista. - Só precisamos atrelar ele ao trenó secundário que vai levar os presentes. Mas isso não levará mais que meia hora. Não é incrível?

- As renas... - foi tudo o que o bom velhinho conseguiu balbuciar, mas foi novamente interrompido.

- O pessoal de SMS e do markting achou que elas não são boas para sua imagem. Tem um movimento crescente de defesa dos animais e acharam que amarrar uns bichinhos a um trenó poderia sugerir exploração e gerar uma comoção muito negativa. Mas temos certeza de que o senhor nem vai sentir falta delas! Essa belezinha tem um motor super potente, é movido por biocombustível e quase não faz barulho! Usamos o que há de mais moder...

Um barulho de explosão vindo da frente do trenó, seguido por um forte  cheiro de queimado e um princípio de gritaria interromperam o discurso do engenheiro mecânico, que saiu às pressas para ver de perto o que havia acontecido.

Desnorteado com todo aquele caos, Papai Noel fez a única coisa que poderia fazer naquele momento: gritou pela Mamãe Noel, afastou-se com passos trôpegos até os estábulos e pôs-se a chamar cada uma de suas renas pelo nome. Elas pareciam esperar por aquele chamado, pois rapidamente se organizaram na já conhecida formação e esperaram enquanto Papai Noel organizava seu trenó. Os duendes o haviam preparado, como faziam todos os anos, e rapidamente um grupo deles surgiu para ajudar a atrelar o carro com os presentes ao trenó principal. Mamãe Noel apareceu pouco depois, trazendo as cenouras que alimentariam as renas, os biscoitos que havia assado às escondidas na noite anterior e uma garrafa de chocolate quente recém saído do fogo. Beijou as bochechas rosadas do marido, ajeitou o capuz sobre seus cabelos brancos e desejou boa viagem.

Enquanto a equipe de manutenção tentava reparar a pane elétrica que havia causado a explosão e o gerente de logística discutia ferozmente com o de manutenção, Papai Noel instigou suas renas e seu antigo trenó deu partida, escorregando suavemente pela neve fresca até ganhar velocidade e decolar. De dentro de um dos bolsos do pesado casaco vermelho, o bom velhinho puxou a lista de presentes que havia conseguido com um dos analistas de sistemas de plantão e apressou-se em jogar lá de cima o tablet que, supostamente, lhe diria para onde ir. Sorriu satisfeito com o vento gelado batendo em seu rosto e deixou escapar sua característica risada natalina.

Muitos metros abaixo, a equipe que observava o antigo trenó desaparecer pelo céu pintalgado de flocos de neve concluiu rapidamente que o Projeto "Noite Feliz" daria no go. Papai Noel havia retomado o controle do Natal.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Sexto Sentido

Ela aprendeu a entender aqueles sinais mesmo antes de saber seu nome. A sensação de nó na gargante, frio na barriga e pensamentos fora de controle tomavam seu corpo de assalto desde suas mais tenras lembranças.

Ela soube de antemão quando seu cachorro de estimação morreria. Plantou-se junto ao animal doente durante todo o dia, até que a respiração dele se tornou um sopro e cessou por definitivo. Mais tarde, soube antes de todos que havia alguma coisa errada com a saúde de sua avó. Sua inquietação incontrolável e o comportamento fora dos padrões antecederam a fatídica internação e a terrível notícia. Sabia quando uma amiga não estava bem, mesmo olhando através de um sorriso tranquilizador. Conhecia os tons de voz dos seus próximos e identificava, sem grandes dificuldades, quando algo não estava certo. Soube que tomou uma decisão errada no trabalho antes que qualquer um lhe desse o veredito: aquele frio na barriga se instaurou no momento em que dera a resposta impulsiva e não a abandonou até que a proposta se provasse uma furada.

Tinha um imenso orgulho da intuição que sempre fazia soar os alarmes mais altos de sua consciência: enquanto as pessoas patinavam em problemas perfeitamente previsíveis, ela caminhava ao largo deles ilesa, impelida por uma força poderosa e desconhecida. Considerava-se privilegiada, imbatível e inalcançável, até o dia em que aqueles olhos escuros cruzaram seu caminho a ela ignorou a voz na sua cabeça que tentava lhe dizer que aquele amor a levaria à ruína.

domingo, 25 de novembro de 2018

Isso também passa

A frase amanheceu pintada à mão, com tinta preta, no imenso outdoor que ladeava a principal via expressa da cidade. O vento da última tempestade de verão tinha entortado o enorme painel de madeira e desbotado suas cores, mas agora ele exibia, orgulhoso, aquelas três palavras: Isso também passa.

Pedro distraiu-se momentaneamente do trânsito e seus olhos cansados encontraram a frase. Foi impossível não pensar que aquilo havia sido escrito para ele: sentia-se particularmente exausto naquela manhã, depois da devastadora experiência de enterrar o próprio pai. Ele sabia que aquela hora chegaria mais cedo ou mais tarde, mas nunca esteve preparado para isso. Achou que aquele nó na garganta e o aperto no peito que se formaram desde que recebera a notícia duraria para sempre, mas aquela frase no outdoor lhe dizia que não.
Alguns carros atrás, a atenção de Ana se desviou dos garranchos escritos na receita médica para aquelas três palavras do painel. Sempre fora uma pessoa muito sensitiva e teve certeza de que aquela era uma mensagem de incentivo para que ela não desistisse da luta contra o tumor que havia virado sua vida do avesso nas últimas semanas. Apesar do medo, das dores, do mal estar e do cansaço que haviam se instaurado em seu corpo desde o início do tratamento, ela sentiu-se momentaneamente mais forte e fez uma prece silenciosa para agradecer por aquele sinal de que tudo ficaria bem.

João conferiu novamente a hora , suspirou exasperado e lançou um olhar pela janela do ônibus. Encontrou a frase pintada no outdoor, refletiu brevemente sobre seu significado e, quase sem perceber, sentiu-se um pouco mais otimista. É claro que aquela era apenas uma fase ruim. A crise financeira causada pela demissão inesperada, as dívidas acumuladas e o desapontamento pelas repetidas oportunidades perdidas passariam. Tentou acreditar que aquela frase era algum tipo de bom presságio e sentiu o nervosismo se abrandar. Estava indo para a última entrevista de um longo processo seletivo. Por que não acreditar que tinha todas as chances de conseguir o emprego?

Beatriz se desligou das intermináveis instruções da advogada e lançou um olhar cansado pela janela fechada do Uber. Ignorou o próprio reflexo abatido e foi pousar os olhos sobre o outdoor capenga e a frase pintada nele. Aquelas palavras tiveram o efeito de um abraço amigo em meio à montanha russa de emoções que sua vida havia se tornado desde a separação. Ela sabia que aquela era a melhor decisão depois de tantos meses de discussões ácidas, tentativas frustradas de reconciliação e do esforço imenso de acreditar que tudo era apenas uma crise passageira. Quando o amor se transformou em rancor e ele se mudou para a casa do irmão, ela viu sua vida ser consumida pela solidão e pela rotina exaustiva de discussões por causa de móveis, rateios de contas e fins de semana com o filho. Naquela manhã, enquanto se maquiava para tentar esconder as marcas de noites mal dormidas, ela achou que nunca mais seria capaz de amar e sentir-se amada, mas aquelas três palavras encheram seu coração magoado com a esperança de que ainda haveria felicidade reservada para ela.

Quando a Pedro, Ana, João e Beatriz passaram novamente pela via expressa, não encontraram mais as três palavras pintadas no outdoor. A estrutura de madeira havia sido reparada e coberta com a propaganda de um supermercado. Para eles, porém, a mensagem exibida por aquele outdoor seria sempre a mesma: Isso também passa.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Ataque Suicida

O tempo pareceu parar por alguns segundos enquanto ela observava aquele botão vermelho e decidia se estava mesmo disposta a levar o gesto adiante. E se estivesse cometendo um erro? E se aquilo fosse radical demais? Relutou brevemente e cogitou deixar a ideia de lado. Talvez pudesse fazer as coisas serem diferentes daquela vez. Podia fazer uma nova tentativa de diálogo, quem sabe?

Recordou-se, então, de como todas as tentativas anteriores já tinham fracassado e de todas as batalhas exaustivas travadas até ali. Sabia que haveria arrependimento, provavelmente haveria lágrimas, mas precisava tomar aquela decisão se realmente quisesse restabelecer a paz. Respirou fundo, redobrou a coragem e leu mais uma vez a mensagem exibida no visor do telefone: "O contato será bloqueado e excluído. Deseja continuar?"

Ela continuou. Apertou o botão vermelho identificado como "sim" e deixou escapar o ar que ficou preso nos seus pulmões. Talvez ainda não fosse o fim da guerra, mas aquela era uma trégua necessária para bater em retirada, estimar as baixas e cogitar a possibilidade de uma rendição. 

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Clube da Insônia

Quase todas as noites, as visitas indesejáveis invadiam o quarto dela e tiravam seu sossego. Entravam sem nenhuma cerimônia, ignorando a placa de “não perturbe” presa à maçaneta da porta. Quase todas as tentativas de mantê-las longe já tinham sido feitas: as recomendações para que o quarto se tornasse um refúgio tranquilo, escuro e sem aparelhos eletrônicos que causassem distração foram seguidas à risca, o celular entrava em modo silencioso no horário agendado e permanecia em absoluto silêncio pelas oito horas que se seguiam. A alimentação também já tinha mudado: a vilã “cafeína” já havia sido banida das refeições que vinham após o pôr-do-sol e, apesar de tudo, as visitas entravam em seu quarto assim que as luzes se apagavam.

Ela conhecia todas perfeitamente bem e quase podia adivinhar quando cada uma apareceria. A ansiedade era a mais frequente. Chegava com seus lustrosos sapatos de salto e andava em círculos ao seu redor, enumerando a enorme quantidade de coisas que ela tinha a fazer: aquele relatório que precisava entregar até sexta-feira, a apresentação que teria que fazer na reunião de equipe, o resultado daquele exame que precisava buscar no laboratório, as reservas que ainda não tinha feito para a viagem do feriado, os possíveis desdobramentos daquele “precisamos conversar” que tinha ouvido mais cedo e várias outras pequenas coisas que estavam na sua lista de afazeres e pareciam perfeitamente sob controle antes dela deitar a cabeça no travesseiro.

Havia também a angústia. Essa chegava em silêncio e passava a noite arrastando suas saias pesadas pelo chão do quarto. Aparecia mesmo quando as coisas estavam em perfeita ordem e sussurrava aos ouvidos dela aquelas dúvidas que tiravam seu sossego. Será que precisava realmente ter falado sobre aquele assunto no jantar? Será que estava mesmo tudo bem com seu namoro? Precisava de verdade ter comprado aquelas roupas? Por que a médica tinha pedido aquele segundo exame? Será que o chefe tinha marcado a reunião para reclamar do trabalho dela? Não importava o quanto ela se esforçasse para ignorar aquela voz, as perguntas entravam pelos ouvidos e seguiam direto para os seus nervos.

Havia visitantes menos frequentes, mas igualmente inconvenientes: a tristeza aparecia de vez em quando, arranjava um espaço na cama e deitava ao lado dela com seus pés gelados. A mágoa escancarava a porta e ficava por ali, zanzando sem rumo e ruminando em voz alta todas as coisas que ela podia ter dito durante aquela discussão. Como não tinha pensado em dizer aquela frase na fatídica conversa do final de semana?

Havia noites em que ela decidia não deixar ninguém entrar. Apelava para os comprimidos manipulados, para uma dose extra de álcool ou para tentativas de levar o corpo à exaustão. Dormia feito uma pedra por gloriosas horas, mas quando abria os olhos, muito antes do horário programado no despertador, encontrava as visitas paradas à cabeceira da sua cama, sorridentes por finalmente verem ela despertar. Nenhum dos visitantes tinha pressa de ir embora: eles se demoravam por muitas horas e, não raramente, tiravam ela da cama para forçá-la a procurar alguma distração enquanto toda a cidade ao seu redor dormia.

Quase todas as noites eram iguais: a turma do clube da insônia chegava sem ter sido convocada, se reunia em seu quarto e só partia pouco antes do amanhecer. Quando o sol nascia e o despertador tocava, ela achava que tinha dormido bem menos do que gostaria e saía exausta da cama, desejando que o dia passasse rápido para que ela pudesse voltar para casa e finalmente dormir.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Luto

Ninguém parecia ter realmente acreditado na morte do Léo, até ver o caixão fechado seguir em cortejo rumo à sua última morada. Atrás, caminhando cambaleante pela estreita alameda de jazigos, ia a pequena multidão de amigos e parentes que tinha enfrentado aquela manhã chuvosa para a derradeira despedida.

A partida do Léo havia sido tão inesperada quanto inexplicável. Jovem e muito ativo, ele foi atacado por um mal súbito fulminante, poucos minutos depois de terminar a sagrada pelada do domingo de manhã. Houve correria e desespero, mas nada mais pôde ser feito quando o socorro finalmente apareceu.

Paulo assistiu as pessoas se aglomerarem ao lado do buraco aberto na terra vermelha com o coração pesado. Enterrar um sobrinho tão jovem não parecia o ciclo natural da vida e ele não pôde deixar de se perguntar como ninguém percebeu que poderia haver algo errado com o garoto. Diante de uma demonstração tão dolorosa da fragilidade humana, decidiu que talvez fosse o momento de parar de adiar o check-up que sempre deixava para o ano seguinte. E se finalmente começasse a abandonar a gordura da picanha e os pequenos excessos que sempre faziam Léo puxar sua orelha nos churrascos da família? 

Alguns passos adiante, Carol e João acompanharam o caixão descer vagarosamente os inevitáveis sete palmos, com os olhos vermelhos e as mão fortemente entrelaçadas. João se recordou que havia sido Léo o responsável por, nove anos antes, unir o casal. Deu-se conta, impulsionado pelo choque da perda repentina, que já era hora de vencer o medo de assumir um compromisso real e pedir Carol em casamento. A vida era curta demais para fica adiando o inevitável. Ao seu lado, Carol parecia compartilhar da mesmo urgência em viver que se instaurou no coração de João. Soltando a mão do namorado, secou uma lágrima fujona do rosto e prometeu a si mesma que terminaria aquele namoro longo, morno e sem futuro tão logo saíssem dali.

Na outra ponta do semi círculo, Luciana se despedia em silêncio do colega de trabalho, que acabou por se tornar um grande amigo. Lançou um olhar consternado à chorosa noiva do companheiro de audiências, tentando imaginar como devia ser dolorosa a sensação de não poder dar um último beijo em seu amor. Pensou na sua própria vida e, tomada por uma repentina sensação de pânico, puxou o celular do bolso do jeans e digitou aquela mensagem que tantas vezes havia ensaiado: “Eu te amo. Vamos ficar juntos de verdade?”. Clicou no botão de “enviar”, devolveu o aparelho para o bolso da calça e deixou escapar um suspiro. Estava feito, mesmo que ela não soubesse o que viria a seguir. O Léo ficaria orgulhoso em saber que ela finalmente havia seguido seu conselho.

Marcos acompanhou as primeiras pás de terra serem jogadas sobre o caixão com um nó na garganta. A partida inesperada do seu primo mais próximo havia tirado o chão debaixo dos seus pés. No bolso, o telefone vibrava sem parar, com as mensagens e e-mails que chegavam em intervalos cada vez menores. Para comparecer ao enterro, precisou abandonar uma reunião importante, com potenciais novos clientes, e sabia que haveria repreensões e ameaças à espera do seu retorno ao Banco. Quando a última pá de terra foi jogada no buraco, ele decidiu que já era tempo de mudar algumas coisas em sua própria vida, antes que fosse ele o proprietário dos sete palmos de chão. Desligou o telefone, tirou o blazer e decidiu que iria para casa abrir uma cerveja e brindar a memória do Léo. Aproveitaria para fazer as contas do que poderia ser feito com a generosa quantia acumulada ao longo de tantos anos de expedientes prolongados e metas batidas. E se desistisse de trocar o carro e usasse o dinheiro da rescisão para finalmente abrir o restaurante que sempre sonhou? 

Os últimos ritos fúnebres chegaram ao fim, acompanhados de abraços calorosos, apertos de mão prolongados e muitas palavras de conforto. As despedidas do Léo estavam oficialmente encerradas, mas alguns dos enlutados que caminhavam de volta à rotina do mundo dos vivos não fazia ideia de todas as mudanças que aquela partida inesperada traria para os dias que ainda estavam por vir.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

A Rosa Solitária

 
A Rosa solitária no alto da roseira era conhecida até pelos pequenos brotos dos galhos mais distantes. Embora tivesse desabrochado junto com suas irmãs, não demorou a ficar claro que aquela rosa não era como as demais. Suas pétalas eram largas e quase perfeitamente simétricas, com cores vivas que chamavam atenção e um perfume que a tornava a favorita das abelhas e pequenos insetos.

A Rosa solitária no alto da roseira, porém, não era uma flor para ser colhida por qualquer um. Sua posição elevada desencorajava aqueles que queriam possuir sua beleza com pouco esforço e os espinhos pontiagudos repeliam as mãos ansiosas que tentavam alcançá-la sem o cuidado que sua colheita exigia. Algumas vezes uma mão ou outra conseguia alcançar aquela altura, mas elas nunca persistiam o suficiente para conseguir cortar o caule grosso que a sustentava e nutria. A Rosa chegou a conhecer mãos cruéis, que arrancaram algumas de pétalas sem nenhuma ternura e macularam momentaneamente sua perfeição, mas ela realinhou as pétalas que sobraram, esperou que outras novas desabrochassem e logo recuperou sua posição de mais bonita da roseira.

As irmãs da rosa solitária se preocupavam com tamanho isolamento e tentavam convencê-la de que seria uma boa ideia se curvar um pouco, para que fosse colhida com mais facilidade. Algumas tentavam fazê-la entender que a vida de uma flor é curta e que aquelas pétalas bonitas não tardariam a murchar. Aconselharam-na a olhar para a parte baixa da roseira e reparar nas outras rosas, de caules mais finos e espinhos menos afiados, que aceitavam de muito bom grado serem colhidas pelas mãos que as escolhesse.

Mas a Rosa solitária do alto da roseira não se alarmava com os conselhos, nem se curvava a qualquer um. Lá de cima ela enxergava melhor que as outras rosas e sabia que as irmãs colhidas por mãos preguiçosas terminavam abandonadas à própria sorte ou entregues a outras mãos que simplesmente não sabiam o que fazer com elas. Do alto da roseira, a Rosa solitária esperava com paciência pelo jardineiro de olhar atento que reconheceria sua peculiaridade e viria colhê-la para replantá-la nas terras adubadas de um jardim fecundo, onde ela finalmente poderia perpetuar sua beleza e perfume tão especiais.

Viviane Ribeiro
25/02/2018

Tempestade e Bonança

 
Já passava de uma da manhã quando ela finalmente entrou em casa. Largou-se no sofá, sem se importar com a sujeira das roupas, livrou-se dos sapatos que oprimiram seus pés durante todo aquele dia infernal e deixou o ar escapar dos pulmões com um suspiro longo. Enquanto se aninhava no abraço reconfortante das almofadas, pôs-se a contabilizar mentalmente os prejuízos acumulados ao longo das doze horas mais caóticas da sua vida.
 
O dia começou com a proposta de ser incrível. Ela foi liberada das atividades da manhã no escritório, permitiu-se o luxo de ir à academia e almoçar sem pressa. Quando saiu para o aeroporto, vestida no seu melhor terno executivo, tinha a perspectiva de fechar o maior negócio de sua carreira e, de quebra, conquistar a promoção pelo qual vinha batalhado nos últimos dois anos. Só precisava enfrentar um voo de quarenta minutos, uma reunião para aperto de mãos, um coquetel diplomático para estreitar as relações com a equipe do novo cliente e tudo estaria feito. Mas logo descobriu que as coisas não seriam fáceis como nos seus planos.
 
Assim que seu carro alcançou a via expressa, ela se viu presa em um congestionamento quilométrico, causado por um engavetamento entre três carros de passeio e um caminhão que derramou sua carga na pista. Apesar de toda a antecedência com a qual havia saído de casa, só conseguiu chegar ao balcão da companhia aérea dezessete minutos após a decolagem do seu avião. Tentou uma vaga em todos os próximos voos programados, mas estavam todos lotados. Com exceção de um, que sairia em uma hora e meia do aeroporto que ficava do outro lado da cidade. Sem pensar duas vezes, ela reservou um assento naquele voo e tentou não sofrer com o preço exorbitante que precisou pagar. Doze minutos depois, estava de volta ao trânsito para tentar a proeza de de cruzar, em 45 minutos, uma distância que não costumava percorrer em menos de duas horas.
 
Precisou avançar quatro sinais vermelhos, fazer um retorno proibido e percorrer 350 metros na contramão para finalmente ver as torres de controle do aeroporto a uma curta distância. Mas a alegria daquela visão desapareceu rapidamente depois que uma pancada forte fez seu corpo ser jogado para frente, até o cinto de segurança travar e trazê-la de volta ao encosto do banco. Havia acertado em cheio a traseira do carro da frente. Tudo isso nos breves segundos em que consultou o aplicativo de trânsito para calcular seu tempo de chegada e não percebeu o sinal passar de verde para amarelo.

Ainda tentava acalmar as batidas descompensadas do coração quando a motorista do carro atingido saiu transtornada do veículo, gesticulando freneticamente em sua direção. Não teve dúvidas de que haveria dois voos perdidos naquele dia.

O que veio a seguir foi classificado pela polícia como uma “briga de trânsito”. Apesar das promessas de que arcaria com todo o prejuízo e dos enfáticos pedidos de desculpas, ela viu o acidente se transformar em uma terrível confusão. Houve gritaria, empurrões, populares separando duas mulheres descontroladas, algemas e uma viagem de patrulhinha até a delegacia mais próxima. A essa altura, seu telefone celular já havia tocado tantas vezes que um dos policiais, impaciente, o havia desligado. Prometeu devolver o aparelho tão logo resolvessem a confusão que as duas brigonas tinham causado. 

A visita à delegacia durou horas. Precisou esperar sua vez em uma sala de espera lotada, cercada de pessoas das quais preferia manter distância segura e de policiais que pareciam tentar entender se ela era perigosa ou apenas maluca. No fim das contas, a ameaça de que passaria a noite na prisão não se concretizou, mas ela precisou assinar muitos papéis antes de ser liberada, devidamente notificada de que haveria um julgamento para tratar de toda a confusão que ela havia causado. Descobriu, também, que seu carro havia sido rebocado para o depósito municipal e que só poderia ser resgatado na segunda-feira, pois já passava das nove da noite de uma sexta. 

Quando finalmente cruzou as portas de saída da delegacia, ela descobriu que o mundo estava sendo lavado por uma furiosa tempestade de verão. Havia bueiros transbordando, carros bloqueando os cruzamentos, vento açoitando as árvores dos canteiros, gente correndo em busca de abrigo contra a chuva, água tomando as calçadas e muita confusão. Um relâmpago particularmente próximo ofuscou seus olhos, seguido bem de perto por um trovão retumbante, uma explosão à distância e, por fim, escuridão. Apenas os faróis dos carros passaram a iluminar a noite e ela concluiu que sua estadia na delegacia ainda se estenderia por mais algum tempo. Voltou resignada para o banco onde havia ficado sentada tantas horas antes, remexeu na bolsa em busca do telefone, mas desistiu de ligá-lo um segundo antes de apertar o botão. Lembrou-se de que, no momento em que voltasse a ficar on line, haveria muitas mensagens e recados exigindo explicações que ela ainda não tinha. Desistiu e limitou-se a esperar.

A tempestade levou uma eternidade para abrandar e a água suja trazida por ela levou a mesma quantidade de tempo para baixar. Mesmo assim, ela descobriu que pegar um táxi seria uma missão impossível. Precisou aceitar a oferta de carona do policial impaciente e seu parceiro. Depois de concluir que ela não era uma meliante procurada, os dois se sensibilizaram com aquela sequencia de desventuras e não se importaram de desviar um pouco a rota de patrulhamento para deixá-la em casa. Ela riu com amargura ao perceber que colecionaria dois passeios no carro da polícia em um único dia. Durante o caminho de volta pra casa, ainda descobriu que certamente precisaria do reboque do seguro para tirar seu carro do depósito e que haveria taxas dolorosas a serem pagas antes que conseguisse reavê-lo.
 
Depois de agradecer incontáveis vezes aos policiais, que poucas horas antes tinham enfiado uma algema nos seus pulsos, ela entrou no prédio, enfrentou os dezesseis andares de escada mal iluminada por luzes de emergência e finalmente vislumbrou os contornos escuros da porta do seu lar, doce lar.

Já passava de uma da manhã quando ela finalmente entrou em casa. Largou-se no sofá, sem se importar com a sujeira das roupas, livrou-se dos sapatos que oprimiram seus pés durante todo aquele dia infernal e deixou o ar escapar dos pulmões com um suspiro longo. Enquanto se aninhava no abraço reconfortante das almofadas, pôs-se a contabilizar mentalmente os prejuízos acumulados ao longo das doze horas mais caóticas da sua vida, até decidir que havia chegado o momento de ligar o telefone e dar satisfações sobre sua ausência prolongada. Conhecia seu chefe, família e amigos o suficiente para saber que eles não demorariam a mobilizar meio mundo para encontrá-la.

Quando o visor do telefone acendeu, havia tantas notificações de mensagens, recados e chamadas perdidas, que ela simplesmente não soube por onde começar. Ficou encarando a tela iluminada por algum tempo, até que o aparelho começou a vibrar e aquele nome no identificador de chamadas fez seu coração parar. Ela havia esperado por aquela chamada ao longo de muitas noites, mas tantas semanas de silêncio esfriaram suas esperanças e a fizeram acredita que aquele era um caminho sem volta. E agora ele estava ali, do outro lado da linha.
 
“Atende esse telefone!” a voz da sua consciência ordenou, sacudindo-a de sua letargia. Com movimentos involuntários, ela colocou-se de pé, ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha, aceitou a chamada com um dedo trêmulo e levou o telefone ao ouvido lentamente, quase como se tivesse medo de descobrir que a ligação havia sido um engano.

- Por onde você andou? - a voz masculina do outro lado da linha respondeu, com um misto de ira e preocupação. - Estou tentando te ligar há horas! Sua irmã me mandou uma mensagem perguntando se eu sabia de você e me deixou maluco! Até o seu chefe está sem notícias suas! Depois caiu essa chuva toda, acabou a luz e eu comecei a me desesperar achando que podia ter te acontecido alguma coisa. Onde você está? O que aconteceu? 

Ela não conseguiu responder a nenhuma das perguntas. Pôs-se a andar de um lado para o outro da sala, revivendo a urgência na voz do outro lado. Ele havia mesmo dito desesperado? Começou a sentir-se sufocada e caminhou até a janela, encaixando o telefone entre o queixo e o ombro para abri-la com as duas mãos e deixar o ar da noite entrar.
 
- Tá tudo bem com você? - ele perguntou, por fim, quando a espera por respostas se tornou insuportável. Ela segurou novamente o aparelho junto ao ouvido, com uma mão que continuava trêmula, contemplou o horizonte da cidade sem luz, respirou fundo e se recompôs.

- Sim. - respondeu, finalmente, com sinceridade. Ali de cima, abrigada na segurança da sua casa, ela percebeu que a lua cheia brilhava de forma incrível sem todas aquelas luzes artificiais para ofuscá-la. Sentiu-se invadida por uma onda de tranquilidade e se deu conta de que tinha tudo o que precisava depois de um dia como aquele. - Quer dizer, aconteceram algumas coisas. Muitas coisas. Tá com tempo pra ouvir?

Ela deixou escapar um sorriso quando recebeu um “é claro que estou” como resposta e sentiu os músculos do corpo relaxarem. Puxou uma cadeira, acomodou-se na frente da janela e pôs-se a contar sobre aquele longo dia, exatamente como costumava fazer antes deles decidirem seguir rumos diferentes. 

Os dois apreciaram muitas luas cheias ao longo dos anos que vieram a seguir, mas nenhuma delas foi tão bonita quanto a que brilhou naquela noite de black out, entre as nuvens escuras do que antes havia sido uma grandiosa tempestade de verão.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Feliz Ano Velho




Todo mundo que conhecia Priscila, sabia que ela nunca ia a festas de Ano Novo. Não que ela fosse antissocial. Muito pelo contrário. Priscila era foliã assídua nas festas de Carnaval, São João e Halloween. Adorava os almoços em família da Páscoa, as viagens com amigos nos feriados e circulava com empolgação entre as tardes de verão na praia e os queijos e vinhos em noites de inverno. Ajudava a organizar happy hours, open houses e chás de bebês. Montava a árvore de Natal, enfeitava a casa, participava de um sem fim de amigos-ocultos de final ano e era presença garantida na ceia da noite Natal. Mas quando as ruas se enchiam de gente vestida de branco e os fogos de artifício estouravam anunciando a chegada do novo ano, Priscila não era mais vista por ninguém. 

Tinha sempre uma desculpa perfeita para a turma que insistia em tentar tê-la por perto na data: uma viagem de última hora com amigos de infância, uma estadia num hotel isolado, um mal-estar arrebatador na noite de réveillon e várias outras respostas perfeitamente convincentes para justificar seu sumiço ou as mensagens não respondidas. Com o passar dos anos, a ausência recorrente deixou de despertar curiosidade e Priscila passou a desaparecer sem maiores explicações. Voltava sempre a tempo de desmontar a árvore de Natal no Dia de Reis.

Quem convivia com Priscila por tempo suficiente, conhecia o real motivo para os sumiços com data marcada: um coração partido às vésperas do Reveillon. As poucas palavras que eram ditas sobre o assunto, afirmavam que houve choro e muito drama, poucas horas antes de um importante anúncio que estava previsto para acontecer na noite de Ano Novo. Desde então, Priscila nunca mais comemorou a data e seus desaparecimentos chegavam a ser um alívio para os que tinham presenciado o triste episódio de tantos anos atrás.

Quando Priscila chegou em casa, numa terça-feira fria de agosto, precisou dar dois passos para trás e conferir se não havia entrado no apartamento errado. A mesa de jantar, quase sempre ocupada pelo notebook, pilhas de revistas e correspondências antigas, estava coberta por uma toalha branca e preparada para o que deveria ser algum tipo de jantar especial. Havia balões brancos espalhados por toda a sala e pedacinhos de papel prateado forravam a mesa de centro, onde uma garrafa de espumante descansava dentro de um balde de gelo e duas taças de cristal esperavam por um brinde. De algum lugar do ambiente ecoava as notas suaves de uma música que ela conhecida perfeitamente, apesar de todos os esforços que havia feito para esquecê-la.

Priscila levou tanto tempo absorvendo cada um daqueles detalhes, que demorou a perceber que não estava sozinha na casa. Sentado no sofá, com as mãos cruzadas em um gesto de nervosismo, ele a observava com aqueles olhos escuros bem abertos e cheios de ansiedade. Colocou-se de pé quando ela não esboçou nenhuma reação, mas não se a arriscou a fazer nenhum outro movimento brusco. Ela forçou-se a piscar para ter certeza de que não estava sendo enganada por nenhum truque da sua mente. Mas ele continuou ali, imóvel. Parecia exatamente o mesmo daquela noite de muitos anos atrás, com exceção de algumas marcas de expressão e do cansaço evidente naqueles olhos escuros. Percebeu, sentindo a alma pesar um pouco menos, que ela não havia sido a única a enfrentar anos difíceis.

Quando ele finalmente se atreveu a quebrar o silêncio, a voz rouca da qual ela ainda se lembrava, com dolorosa precisão, falou de arrependimento e remorso. Contou sobre a sequência de decisões erradas que havia tomado, das tentativas de recomeço frustradas, da vergonha infantil de voltar atrás e da sensação de vida desperdiçada que passou a experimentar nos últimos meses. Falou por tempo suficiente para ela se esquecer dos anos que haviam se estendido entre eles, até que um flash de memória trouxe de volta as últimas palavras daquela conversa definitiva: entre soluços e lágrimas, ela afirmou que ele se arrependeria e voltaria antes que o ano novo chegasse. De repente, toda aquela decoração fez sentido.

- Você não vai falar nada? – a pergunta a arrancou dos seus devaneios. Ele havia tomado coragem e se aproximou o suficiente para desnortear os sentidos dela. Aqueles olhos escuros continuavam a encará-la fixamente, numa súplica silenciosa por qualquer resposta. Ela se lembrou de todas as palavras duras que havia ensaiado na frente do espelho e dos discursos raivosos que repassara por tantas vezes com a amiga nas noites de fossa e vinho. Mas não conseguiu começar nenhum deles. Sentindo o peso de uma tristeza carregada por tantos anos escorregar de suas costas, rendeu-se ao magnetismo que o tempo não foi capaz de anular, arremessou-se nos braços dele, fechou os olhos e pronunciou as únicas palavras que vieram à sua cabeça depois que o perfume dele anestesiou sua racionalidade.

- Feliz Ano Novo.