domingo, 25 de fevereiro de 2018

A Rosa Solitária

 
A Rosa solitária no alto da roseira era conhecida até pelos pequenos brotos dos galhos mais distantes. Embora tivesse desabrochado junto com suas irmãs, não demorou a ficar claro que aquela rosa não era como as demais. Suas pétalas eram largas e quase perfeitamente simétricas, com cores vivas que chamavam atenção e um perfume que a tornava a favorita das abelhas e pequenos insetos.

A Rosa solitária no alto da roseira, porém, não era uma flor para ser colhida por qualquer um. Sua posição elevada desencorajava aqueles que queriam possuir sua beleza com pouco esforço e os espinhos pontiagudos repeliam as mãos ansiosas que tentavam alcançá-la sem o cuidado que sua colheita exigia. Algumas vezes uma mão ou outra conseguia alcançar aquela altura, mas elas nunca persistiam o suficiente para conseguir cortar o caule grosso que a sustentava e nutria. A Rosa chegou a conhecer mãos cruéis, que arrancaram algumas de pétalas sem nenhuma ternura e macularam momentaneamente sua perfeição, mas ela realinhou as pétalas que sobraram, esperou que outras novas desabrochassem e logo recuperou sua posição de mais bonita da roseira.

As irmãs da rosa solitária se preocupavam com tamanho isolamento e tentavam convencê-la de que seria uma boa ideia se curvar um pouco, para que fosse colhida com mais facilidade. Algumas tentavam fazê-la entender que a vida de uma flor é curta e que aquelas pétalas bonitas não tardariam a murchar. Aconselharam-na a olhar para a parte baixa da roseira e reparar nas outras rosas, de caules mais finos e espinhos menos afiados, que aceitavam de muito bom grado serem colhidas pelas mãos que as escolhesse.

Mas a Rosa solitária do alto da roseira não se alarmava com os conselhos, nem se curvava a qualquer um. Lá de cima ela enxergava melhor que as outras rosas e sabia que as irmãs colhidas por mãos preguiçosas terminavam abandonadas à própria sorte ou entregues a outras mãos que simplesmente não sabiam o que fazer com elas. Do alto da roseira, a Rosa solitária esperava com paciência pelo jardineiro de olhar atento que reconheceria sua peculiaridade e viria colhê-la para replantá-la nas terras adubadas de um jardim fecundo, onde ela finalmente poderia perpetuar sua beleza e perfume tão especiais.

Viviane Ribeiro
25/02/2018

Tempestade e Bonança

 
Já passava de uma da manhã quando ela finalmente entrou em casa. Largou-se no sofá, sem se importar com a sujeira das roupas, livrou-se dos sapatos que oprimiram seus pés durante todo aquele dia infernal e deixou o ar escapar dos pulmões com um suspiro longo. Enquanto se aninhava no abraço reconfortante das almofadas, pôs-se a contabilizar mentalmente os prejuízos acumulados ao longo das doze horas mais caóticas da sua vida.
 
O dia começou com a proposta de ser incrível. Ela foi liberada das atividades da manhã no escritório, permitiu-se o luxo de ir à academia e almoçar sem pressa. Quando saiu para o aeroporto, vestida no seu melhor terno executivo, tinha a perspectiva de fechar o maior negócio de sua carreira e, de quebra, conquistar a promoção pelo qual vinha batalhado nos últimos dois anos. Só precisava enfrentar um voo de quarenta minutos, uma reunião para aperto de mãos, um coquetel diplomático para estreitar as relações com a equipe do novo cliente e tudo estaria feito. Mas logo descobriu que as coisas não seriam fáceis como nos seus planos.
 
Assim que seu carro alcançou a via expressa, ela se viu presa em um congestionamento quilométrico, causado por um engavetamento entre três carros de passeio e um caminhão que derramou sua carga na pista. Apesar de toda a antecedência com a qual havia saído de casa, só conseguiu chegar ao balcão da companhia aérea dezessete minutos após a decolagem do seu avião. Tentou uma vaga em todos os próximos voos programados, mas estavam todos lotados. Com exceção de um, que sairia em uma hora e meia do aeroporto que ficava do outro lado da cidade. Sem pensar duas vezes, ela reservou um assento naquele voo e tentou não sofrer com o preço exorbitante que precisou pagar. Doze minutos depois, estava de volta ao trânsito para tentar a proeza de de cruzar, em 45 minutos, uma distância que não costumava percorrer em menos de duas horas.
 
Precisou avançar quatro sinais vermelhos, fazer um retorno proibido e percorrer 350 metros na contramão para finalmente ver as torres de controle do aeroporto a uma curta distância. Mas a alegria daquela visão desapareceu rapidamente depois que uma pancada forte fez seu corpo ser jogado para frente, até o cinto de segurança travar e trazê-la de volta ao encosto do banco. Havia acertado em cheio a traseira do carro da frente. Tudo isso nos breves segundos em que consultou o aplicativo de trânsito para calcular seu tempo de chegada e não percebeu o sinal passar de verde para amarelo.

Ainda tentava acalmar as batidas descompensadas do coração quando a motorista do carro atingido saiu transtornada do veículo, gesticulando freneticamente em sua direção. Não teve dúvidas de que haveria dois voos perdidos naquele dia.

O que veio a seguir foi classificado pela polícia como uma “briga de trânsito”. Apesar das promessas de que arcaria com todo o prejuízo e dos enfáticos pedidos de desculpas, ela viu o acidente se transformar em uma terrível confusão. Houve gritaria, empurrões, populares separando duas mulheres descontroladas, algemas e uma viagem de patrulhinha até a delegacia mais próxima. A essa altura, seu telefone celular já havia tocado tantas vezes que um dos policiais, impaciente, o havia desligado. Prometeu devolver o aparelho tão logo resolvessem a confusão que as duas brigonas tinham causado. 

A visita à delegacia durou horas. Precisou esperar sua vez em uma sala de espera lotada, cercada de pessoas das quais preferia manter distância segura e de policiais que pareciam tentar entender se ela era perigosa ou apenas maluca. No fim das contas, a ameaça de que passaria a noite na prisão não se concretizou, mas ela precisou assinar muitos papéis antes de ser liberada, devidamente notificada de que haveria um julgamento para tratar de toda a confusão que ela havia causado. Descobriu, também, que seu carro havia sido rebocado para o depósito municipal e que só poderia ser resgatado na segunda-feira, pois já passava das nove da noite de uma sexta. 

Quando finalmente cruzou as portas de saída da delegacia, ela descobriu que o mundo estava sendo lavado por uma furiosa tempestade de verão. Havia bueiros transbordando, carros bloqueando os cruzamentos, vento açoitando as árvores dos canteiros, gente correndo em busca de abrigo contra a chuva, água tomando as calçadas e muita confusão. Um relâmpago particularmente próximo ofuscou seus olhos, seguido bem de perto por um trovão retumbante, uma explosão à distância e, por fim, escuridão. Apenas os faróis dos carros passaram a iluminar a noite e ela concluiu que sua estadia na delegacia ainda se estenderia por mais algum tempo. Voltou resignada para o banco onde havia ficado sentada tantas horas antes, remexeu na bolsa em busca do telefone, mas desistiu de ligá-lo um segundo antes de apertar o botão. Lembrou-se de que, no momento em que voltasse a ficar on line, haveria muitas mensagens e recados exigindo explicações que ela ainda não tinha. Desistiu e limitou-se a esperar.

A tempestade levou uma eternidade para abrandar e a água suja trazida por ela levou a mesma quantidade de tempo para baixar. Mesmo assim, ela descobriu que pegar um táxi seria uma missão impossível. Precisou aceitar a oferta de carona do policial impaciente e seu parceiro. Depois de concluir que ela não era uma meliante procurada, os dois se sensibilizaram com aquela sequencia de desventuras e não se importaram de desviar um pouco a rota de patrulhamento para deixá-la em casa. Ela riu com amargura ao perceber que colecionaria dois passeios no carro da polícia em um único dia. Durante o caminho de volta pra casa, ainda descobriu que certamente precisaria do reboque do seguro para tirar seu carro do depósito e que haveria taxas dolorosas a serem pagas antes que conseguisse reavê-lo.
 
Depois de agradecer incontáveis vezes aos policiais, que poucas horas antes tinham enfiado uma algema nos seus pulsos, ela entrou no prédio, enfrentou os dezesseis andares de escada mal iluminada por luzes de emergência e finalmente vislumbrou os contornos escuros da porta do seu lar, doce lar.

Já passava de uma da manhã quando ela finalmente entrou em casa. Largou-se no sofá, sem se importar com a sujeira das roupas, livrou-se dos sapatos que oprimiram seus pés durante todo aquele dia infernal e deixou o ar escapar dos pulmões com um suspiro longo. Enquanto se aninhava no abraço reconfortante das almofadas, pôs-se a contabilizar mentalmente os prejuízos acumulados ao longo das doze horas mais caóticas da sua vida, até decidir que havia chegado o momento de ligar o telefone e dar satisfações sobre sua ausência prolongada. Conhecia seu chefe, família e amigos o suficiente para saber que eles não demorariam a mobilizar meio mundo para encontrá-la.

Quando o visor do telefone acendeu, havia tantas notificações de mensagens, recados e chamadas perdidas, que ela simplesmente não soube por onde começar. Ficou encarando a tela iluminada por algum tempo, até que o aparelho começou a vibrar e aquele nome no identificador de chamadas fez seu coração parar. Ela havia esperado por aquela chamada ao longo de muitas noites, mas tantas semanas de silêncio esfriaram suas esperanças e a fizeram acredita que aquele era um caminho sem volta. E agora ele estava ali, do outro lado da linha.
 
“Atende esse telefone!” a voz da sua consciência ordenou, sacudindo-a de sua letargia. Com movimentos involuntários, ela colocou-se de pé, ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha, aceitou a chamada com um dedo trêmulo e levou o telefone ao ouvido lentamente, quase como se tivesse medo de descobrir que a ligação havia sido um engano.

- Por onde você andou? - a voz masculina do outro lado da linha respondeu, com um misto de ira e preocupação. - Estou tentando te ligar há horas! Sua irmã me mandou uma mensagem perguntando se eu sabia de você e me deixou maluco! Até o seu chefe está sem notícias suas! Depois caiu essa chuva toda, acabou a luz e eu comecei a me desesperar achando que podia ter te acontecido alguma coisa. Onde você está? O que aconteceu? 

Ela não conseguiu responder a nenhuma das perguntas. Pôs-se a andar de um lado para o outro da sala, revivendo a urgência na voz do outro lado. Ele havia mesmo dito desesperado? Começou a sentir-se sufocada e caminhou até a janela, encaixando o telefone entre o queixo e o ombro para abri-la com as duas mãos e deixar o ar da noite entrar.
 
- Tá tudo bem com você? - ele perguntou, por fim, quando a espera por respostas se tornou insuportável. Ela segurou novamente o aparelho junto ao ouvido, com uma mão que continuava trêmula, contemplou o horizonte da cidade sem luz, respirou fundo e se recompôs.

- Sim. - respondeu, finalmente, com sinceridade. Ali de cima, abrigada na segurança da sua casa, ela percebeu que a lua cheia brilhava de forma incrível sem todas aquelas luzes artificiais para ofuscá-la. Sentiu-se invadida por uma onda de tranquilidade e se deu conta de que tinha tudo o que precisava depois de um dia como aquele. - Quer dizer, aconteceram algumas coisas. Muitas coisas. Tá com tempo pra ouvir?

Ela deixou escapar um sorriso quando recebeu um “é claro que estou” como resposta e sentiu os músculos do corpo relaxarem. Puxou uma cadeira, acomodou-se na frente da janela e pôs-se a contar sobre aquele longo dia, exatamente como costumava fazer antes deles decidirem seguir rumos diferentes. 

Os dois apreciaram muitas luas cheias ao longo dos anos que vieram a seguir, mas nenhuma delas foi tão bonita quanto a que brilhou naquela noite de black out, entre as nuvens escuras do que antes havia sido uma grandiosa tempestade de verão.