Ela não pôde
deixar de sorrir quando aquela velha lembrança emergiu das profundezas da sua
memória. Dirigia pela autoestrada a caminho de casa, com o sol se pondo à sua
frente e todo o cansaço do dia pesando em suas costas. Quanto tempo tinha
aquela recordação? Quinze anos? Vinte, talvez?
Abaixou o quebra
sol para proteger os olhos da luz forte do final do dia e encarou a estrada à
sua frente com olhos monótonos. Seus pensamentos vagaram de volta àquela tarde
de outono nublada, onde havia desperdiçado toda sua mesada em uma consulta tola
a alguém que supostamente poderia prever o seu futuro. Ainda conseguia se
recordar do cheiro forte de incenso, da textura da toalha de veludo gasto e das
palavras roucas da mulher super maquiada que limitou-se a responder suas juvenis
angústias afetivas com a afirmação de que ela encontraria o amor da sua vida antes
de morrer.
Agora que aquela
memória havia retornado à sua mente, não conseguia acreditar em como perdera
tanto tempo tentando tornar aquela suposta premonição uma realidade. Desperdiçou
longos anos de sua vida em relacionamentos problemáticos e rompimentos
dramáticos, agarrando-se à esperança pueril de que cada novo beijo traria o
amor verdadeiro que havia sido anunciado pelo tarô cigano. Colecionava alguns
ex-namorados, dois noivados frustrados e um divórcio recém assinado como souvenirs de sua jornada.
Ainda conseguia
sentir o pungente cheiro de incenso quando seus pensamentos e seu corpo foram atingidos
com uma violência descomunal. O som ensurdecedor de ferro sendo amassado e
vidro estilhaçado encheu todo o ar ao seu redor, enquanto ela era arremessada
para diferentes lados durante um tempo que sua consciência oscilante não foi
capaz de calcular.
Quando seus
olhos voltaram a se abrir, tudo ao redor era caos. Ela estava deitada no
asfalto, sentindo o calor de um incêndio e o cheiro de gasolina em combustão.
Sentia uma dor intensa, profunda e devastadora em cada parte do seu corpo.
Tentou levantar a cabeça para estimar o estrago que havia sido feito, mas foi
impedida por um par de mãos que bloquearam seus movimentos com firmeza. Piscou
duas vezes para se acostumar à luminosidade intensa e então identificou um
rosto flutuando pouco acima de si.
- Vai ficar tudo
bem. – o dono da cabeça anunciou, com uma voz grave e quase hipnótica. Por um
breve momento não houve mais dor, nem confusão. – Eu estava logo atrás quando o
outro carro veio na contra mão e acertou você. Já chamei ajuda, vai ficar tudo
bem.
Ela esforçou-se
para responder, mas sentiu a boca invadida por algo que tinha gosto de
ferrugem. Limitou-se a piscar mais uma vez e acreditou. Acreditou em cada
palavra que ele disse enquanto tentava mantê-la consciente. Acreditou que a
ajuda estava quase chegando, que não seria nada grave e que depois que o susto
passasse eles se encontrariam de novo e ririam daquele momento. Acreditou que
tudo ficaria bem, apesar da dor lancinante em sua cabeça e da certeza absoluta
de que havia algum osso bastante fora do lugar em seu corpo. Acreditou naqueles
olhos escuros e expressivos, que a encaravam como se pudessem ler toda
inquietude da sua alma. Acreditou no
baralho cigano, na mulher super maquiada e finalmente compreendeu o significado
das palavras dela.
Já conseguia
ouvir o som distante de uma sirene quando sentiu o gosto de ferro se adensar em
sua boca e os pulmões serem invadidos por um líquido sufocante. Lutou com todas
as suas forças pelo ar e pela oportunidade de contemplar os olhos escuros do
amor da sua vida por mais tempo, mas a escuridão e o silêncio chegaram aos
poucos, juntamente com a certeza de que sua mesada não havia sido realmente
desperdiçada naquela antiga tarde nublada de outono.