sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Premonição


Ela não pôde deixar de sorrir quando aquela velha lembrança emergiu das profundezas da sua memória. Dirigia pela autoestrada a caminho de casa, com o sol se pondo à sua frente e todo o cansaço do dia pesando em suas costas. Quanto tempo tinha aquela recordação? Quinze anos? Vinte, talvez? 

Abaixou o quebra sol para proteger os olhos da luz forte do final do dia e encarou a estrada à sua frente com olhos monótonos. Seus pensamentos vagaram de volta àquela tarde de outono nublada, onde havia desperdiçado toda sua mesada em uma consulta tola a alguém que supostamente poderia prever o seu futuro. Ainda conseguia se recordar do cheiro forte de incenso, da textura da toalha de veludo gasto e das palavras roucas da mulher super maquiada que limitou-se a responder suas juvenis angústias afetivas com a afirmação de que ela encontraria o amor da sua vida antes de morrer.

Agora que aquela memória havia retornado à sua mente, não conseguia acreditar em como perdera tanto tempo tentando tornar aquela suposta premonição uma realidade. Desperdiçou longos anos de sua vida em relacionamentos problemáticos e rompimentos dramáticos, agarrando-se à esperança pueril de que cada novo beijo traria o amor verdadeiro que havia sido anunciado pelo tarô cigano. Colecionava alguns ex-namorados, dois noivados frustrados e um divórcio recém assinado como souvenirs de sua jornada.

Ainda conseguia sentir o pungente cheiro de incenso quando seus pensamentos e seu corpo foram atingidos com uma violência descomunal. O som ensurdecedor de ferro sendo amassado e vidro estilhaçado encheu todo o ar ao seu redor, enquanto ela era arremessada para diferentes lados durante um tempo que sua consciência oscilante não foi capaz de calcular.

Quando seus olhos voltaram a se abrir, tudo ao redor era caos. Ela estava deitada no asfalto, sentindo o calor de um incêndio e o cheiro de gasolina em combustão. Sentia uma dor intensa, profunda e devastadora em cada parte do seu corpo. Tentou levantar a cabeça para estimar o estrago que havia sido feito, mas foi impedida por um par de mãos que bloquearam seus movimentos com firmeza. Piscou duas vezes para se acostumar à luminosidade intensa e então identificou um rosto flutuando pouco acima de si.

- Vai ficar tudo bem. – o dono da cabeça anunciou, com uma voz grave e quase hipnótica. Por um breve momento não houve mais dor, nem confusão. – Eu estava logo atrás quando o outro carro veio na contra mão e acertou você. Já chamei ajuda, vai ficar tudo bem.

Ela esforçou-se para responder, mas sentiu a boca invadida por algo que tinha gosto de ferrugem. Limitou-se a piscar mais uma vez e acreditou. Acreditou em cada palavra que ele disse enquanto tentava mantê-la consciente. Acreditou que a ajuda estava quase chegando, que não seria nada grave e que depois que o susto passasse eles se encontrariam de novo e ririam daquele momento. Acreditou que tudo ficaria bem, apesar da dor lancinante em sua cabeça e da certeza absoluta de que havia algum osso bastante fora do lugar em seu corpo. Acreditou naqueles olhos escuros e expressivos, que a encaravam como se pudessem ler toda inquietude da sua alma. Acreditou no baralho cigano, na mulher super maquiada e finalmente compreendeu o significado das palavras dela.

Já conseguia ouvir o som distante de uma sirene quando sentiu o gosto de ferro se adensar em sua boca e os pulmões serem invadidos por um líquido sufocante. Lutou com todas as suas forças pelo ar e pela oportunidade de contemplar os olhos escuros do amor da sua vida por mais tempo, mas a escuridão e o silêncio chegaram aos poucos, juntamente com a certeza de que sua mesada não havia sido realmente desperdiçada naquela antiga tarde nublada de outono.

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