sábado, 23 de setembro de 2017

Primavera

Desde que fora plantada no pequeno canteiro junto ao muro cinzento no final do terreno, Primavera foi considerada uma estranha por todas as outras flores do jardim. Os canteiros bem cuidados pelo jardineiro exibiam uma coleção das mais diversas e coloridas espécies, que se revezavam entre as estações do ano para encantar os frequentes visitantes do jardim. Primavera fixou-se bem na terra adubada, alimentou-se dos nutrientes revigorantes e lançou seus galhos de trepadeira muro acima, espalhando o tom rosado de suas folhas por onde antes só havia concreto. Mesmo assim as outras flores do jardim a consideravam uma flor ordinária demais para ser apreciada.

As Orquídeas, com suas pétalas de cores exuberantes e pintalgadas, debochavam de Primavera pela facilidade com que ela crescia em qualquer terreno. Enquanto a Orquídea exigia do jardineiro cuidados constantes com a umidade em suas raízes e luz direta em suas folhas, Primavera apenas aproveitava o sol e a água que, vez o outra, molhava sua terra.

As Tulipas, com seu ar aristocrático, gabavam-se do fascínio que exerciam com suas cores vivas e sua forma elegante. Orgulhavam-se do enorme esforço que o jardineiro precisava fazer para manter sua terra constantemente resfriada e do cuidado em mantê-las sempre abrigadas do calor intenso. Primavera continuava presa ao muro, esforçando-se para absorver os nutrientes da terra que ia ficando cada vez mais embaixo.

As Rosas, solitárias em seus caules bem aparados, desprezavam o modo como Primavera se espalhava pelo ambiente. Estavam acostumadas aos cuidados constantes do jardineiro, que se esforçava para manter longe as pragas, mesmo quando os espinhos das rosas arrancavam sangue de seus dedos dedicados. Primavera sabia o que todas achavam dela, mas tinha coisas mais importantes para se ocupar. Lá do alto do muro, elas eram nada além de flores bonitas e coloridas em um jardim bem cuidado.

Na primeira manhã em que o jardineiro não apareceu para dar bom dia às suas plantas, houve um grande burburinho no jardim. Quando ele deixou de aparecer nos dias seguintes, o caos se instaurou em cada um dos canteiros: as Tulipas protestaram contra os raios de sol do meio dia que batiam dolorosamente em suas folhas, as Orquídeas lançaram lamentos revoltados contra a terra seca, os Crisântemos resmungaram contra os ventos cortantes do fim da tarde e as Rosas choramingaram contra as lagartas e pulgões que começaram a rondar a terra ao redor. Tudo piorou ainda mais quando nuvens cor de chumbo trouxeram uma chuva que inundou os canteiros e escondeu o sol por vários dias. O jardim, que normalmente era uma sinfonia de sons e perfumes, tornou-se triste e silencioso. Do alto do muro que já não era mais cinzento, Primavera sentiu pena de ver suas vizinhas vaidosas tão desamparadas. Ela também havia sentido sede, calor e sofrera com os ventos e as tempestades fortes, mas sua natureza, classificada pelas outras como "ordinária", havia lhe garantido uma capacidade extraordinária de adaptação a grandes variações climáticas e longos períodos de abandono.

Quando o jardineiro retornou ao lar, finalmente recuperado de um mal súbito que lhe roubou muitos dias de vida, encontrou seu amado jardim devastado. O sol e a chuva haviam ressecado e encharcado suas Tulipas, Cravos, Crisântemos, Girassóis e Orquídeas, enquanto suas estimadas Rosas padeceram com o peso das pragas que chegaram com a umidade e a ausência dos remédios. Suspirou desalentado quando viu o trabalho de tantos meses desperdiçado, mas concluiu que não estava tudo perdido quando seus olhos pousaram sobre o que antes era o muro cinzento do quintal. A pequena muda de Primavera havia vingado e espalhado seus galhos repletos de folhas rosas por toda a extensão do concreto. Ainda havia vida por ali, no fim das contas.

O jardineiro alongou os braços pálidos pela falta de sol, estalou os dedos destreinados, encontrou a tesoura de poda no bolso do avental e decidiu recomeçar o trabalho imediatamente, começando por dar atenção àquela linda primavera que havia salvo o seu dia.

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